sábado, 5 de fevereiro de 2011

SERTÃO DO SÃO MARCOS


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.Sertão do São MarcosMarcos Quinan


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Contos


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2000



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Capa
Tela “Sertão do São Marcos” – Marcos Quinan

Criação, fotografia e layout da capa
Marcelo Quinan

Fotografia
Roseli de Assunção Naves

Preparação
Lélia Wanderley de Campos
Roseli de Assunção Naves

Revisão
Carlos Roberto Lacerda
Roseli de Assunção Naves
Conceição Elarrat


ISBN 85-87374-18-4 - 244p. Conto brasileiro

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Para
Elias, meu pai,
tropeiro quando moço no Sertão do São Marcos,
Maria, minha mãe,
do povo dos Três Quartas da Limeira
e
Sandra, Marco Antonio, Marina e Marcelo,
seus descendentes.




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Agradeço a Wantuil, Clarice, Orádia, Ana Vitória, seu Zé, Henrique, Roseli e especialmente a João Veiga (Ipameri Histórico), fontes permanentes de consulta, e a Lélia Wanderley de Campos, Carlos Roberto Lacerda, Conceição Elarrat, Camilo Delduque, Joãozinho Gomes e Reivaldo Vinas.


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Nessas histórias, as pessoas, suas simplicidades, costumes, estimas, tristezas, angústias, alegrias, espertezas e o jeito de viver existiram. Os fatos, lugares, caminhos e encantamentos foram misturados na imaginação. São histórias de pessoas comuns, do interior, onde a expressão oral conservada de boca a ouvido compõe a verdadeira linguagem brasileira.

Distrito do Arraial de Nossa Senhora da Conceição, Distrito do Vai Vem, Município de Entre Rios, hoje Ipameri, no começo era o Sertão do São Marcos.

Nasci lá.



MQ




.......


“Um sentir é o do sentente, mas outro é o do sentidor”

............................................Guimarães Rosa

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Índice

Chapada do São Marcos
Joaquim da porteira
Forquia
Breganha
Júlia Partera
Chifre queimado
Atalho
Acabei com elas
Baltazar de Das Dores
Perpétua
Ojero
Valentia
Terra do Cobertão
Mato Dentro
Três Quartas da Limeira
Rol das almas
Zé da Cabaça
Desde que nasceste
Rancho do Lajeado
Duas sombras
Cobre de sino
Toque de passagem
Colcha de retalhos
Padre Inocêncio
Irino do Além
Lalinha
Nome de macho
Abrigo
O escrivão
Olho do boi
Dentro do poeta
Lado de lá do rio
Fogo pelas ventas
Fiado
Moça Davina
O irmão do Rutinho
Madalena
João Carolina
São Jorge
Perdoado Quenzim
Rudiei Arrependidos
Zelé
Rua de Cima
Antonho da Fita
Pai rei
Buriti Cercado
Cavalo de guia
Zarias
Rua de Baixo
Novembro de 1999

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Chapada do São MarcosChapada do São Marcos
bera do Ri do Braço
Vai Vem é afruente
entre águas
entre rios
meio de cerrado
onde avoa codorna
e ispanto perdiz nos passo

na porta da casa
bambuzá parceiro de vento cantadô
na porta da casa tamém
um pau frondoso
que cumula sombra nos embaxo
as foia sôrta antes da frorada
e arcochoa a sombra
pr’eu deitá cum meu amô
se cai fror durmida
nóis panha e se prefuma
se cai diurna
nóis se farta de cheiro que nem beija-fror

teno tropa prá tocá
nóis vai no passo manso
mode num cansá animá
mode tê paga boa
corda cedo
dia sem raiá
móia os pé no sereno
prá animá incontrá
no pasto pequeno
nóis campeia eles
traiz, arreia e vai gado buscá
Istimosa, Paridera, Esperança, Lambari ...

às veiz nóis passa no vau
céu vermeio parino o sol
merenda já tá cherano
o corpo recrama sustança
nóis tira o leite
aparta o gado
e atende o corpo cum zelo

pur pricisão às veiz
nóis mata um capado já chei de ingorda
aí é festança
nóis sangra ele antes da lida do gado
mode as muié aprepará
a limpança, o discarne, o retaio
fazê a lingüiçada e as armôndega

se truveja nas cabicera do Braço
nóis fica preparado
água do ri vai lambê as berada
e favorecê a distoca
aí, é o imborná de paçoca
a cabaça d’água e o invergá do corpo no eito

nos ôi de inxada cumulado na vida
o atestado de labuta
coisa que os calo das mão
num faiz pur sê só dois
o da firmeza e o da repuxa

adipois da lida
no terrero, em vorta do lume
cum as istrela recamada no céu
a cheia fazeno crarão
os vaga-lume riscano o negror da noite
na guardança da terra

nos calo da mão
o cantadô recebe a viola
e na quietude
canta sua dismidida querença


ah Sertão do São Marcos
divisórias águas do Braço da minha vida
num achei a sabedoria de ficá
e me perdi nos caminho de vortá




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Joaquim da porteira


No prumo da sombra, sentado no coxo, cigarro de palha atrás da orelha, chapéu meia-aba, com parecença de novo. O bigode branco apontando com as pontas, o igual do cabelo rodeando a calva. Roupa de algodão no alinho e a gemedeira cuidada no sebo curado.
Idade... não sabia, estava no mundo. Fala mansa e um querer saber de tudo mas sem especular muito, só assuntando. A prosa meio enrolada não apontava para canto nenhum, só descobriu que labutava de um tudo nos entremeios da lida.

- Lá vem o enterro do Clemente...

Saía dos pensamentos, tirava o chapéu, alinhava os poucos cabelos. De olhos baixos, assistia à passagem do cortejo já com a porteira aberta. Nessa hora, o tempo parava. Até o ranger do carro de bois passando ao longe, parava. O sanhaço calava seu canto em cima do moirão da porteira. Respeitador. Vento soprava lento em acompanhamento. Fartura de gente. Bom homem o Clemente.
Atrás do Climério, ladeando, dona Ana seguia. Hora mais boa do vivente, hora da morte...
Dos velórios gostava não. Tempo de espera, se o falecido faleceu. Gostava não. Só ladainha e o esconder do mal feito, porque só defunto honrado demais foi, bondade demais teve. Por isso preferia os enterros. Os seis carregando calados o peso do bem e do mal, sem carecer de balança, pensava Joaquim. Dor dos parentes, amor derramando...Vizinhos, amigos e conhecidos já não falam nem bem nem mal, tirando o Manco. Esse sim, parava de falar não, era da natureza dele. Nessas horas que o silêncio é falado. Manco não achava com quem conversar. Mas depois lá na venda:

- Clemente era homem bom com os filhos, mas muito bruto com a criação. Vê ele ferroando uma canga de boi dava dó.

Joaquim virava o gole da branquinha e já saía de fininho. Gostava do depois também não. Preferência era o abrir da porteira, a caminhada silenciosa, só o barulho dos passos no chão sovado da estrada e o sopro do vento respeitador.
A gamela tomando forma no lavrado do facãozinho corneta, bem amolado, e a voz lá de dentro:

- Joaquim, Esperança rebentou a cerca de novo e tá na horta pisando tudo.

Joaquim acudia prontamente. Lá vinha ele puxando Esperança pelo focinho. Mula Borborema, inquieta, no lado da cerca, corria rente olhando a estrada, na dobra do morro.

- Que diacho esse jeito dela, só pode ser uma coisa: É Baldino chegando. Falava sozinho Joaquim

Quando a mulada do tropeiro apontava no tope do morro, tinha que correr e abrir a porteira senão Borborema levava a cerca e tudo. Aberta a porteira, o galope era compassado e garboso até encontrar a tropa; emparelhava com um mulo velho de nome Ojero, que ninguém acreditava na idade que tinha. Perguntado Baldino pela idade do mulo, ele só dava risada até mudar de assunto.
A reação de Borborema era o primeiro sinal de festa no lugar. O cometa de Baldino era o mais festejado por aquelas bandas. Farturento no proseio, dava as notícias como coisa de assunto seu, trazia recado, carta, receita de quitanda do mesmo jeito que as notícias da política. Trazia o encomendado e também o do carecer daquela gente. Agrado não escasseava a ninguém.
Para Joaquim, presente melhor não havia, o amigo chegando. Para Baldino, a melhor parte de sua lida andeja, o pouso do Braço, local do arrancho, a prosa do amigo. Um lugar no mundo de andar dum tropeiro que se pudesse considerar sua casa, seria ali. Sozinho no mundo, se pudesse escolher um parente, seria Joaquim. Se cobiçasse uma mula nova, seria Borborema.
Não havia no sertão todo céu mais lindo, estrelas mais recamadas. E tinha ainda a formosura e as encomendas de dona Duvigis, cobiça recolhida no corpo e cobre garantido na guaiaca.
Alegria de Joaquim, a chegada de Baldino. Sentados no rabo do fogão, cada um no seu cigarro de palha.

- Baldino, tô pricisano de ir no Ritiro, aproveito do amigo a companhia se for fazê passage pur lá.

- Mais que eu, quem vai gostá é Ojero e Borborema, quem sabe num agrego ela na tropa dessa veiz. Comentou rindo para Joaquim.

Ainda sem raiar o dia, a mulada já se embrenhava pela Meia-Légua. À medida que o tempo engolia o caminho, Joaquim e Baldino aprofundavam a conversa, revelando um ao outro suas histórias, coisa que nunca haviam feito antes, apesar da amizade de tantos anos.

- Nasci em terra distante que nem alembro. Vim novo, cum primo Ambrósio, que já tinha posse no Braço. Fui sendo criado ali na labuta da terra e do gado, cum ele e os irmão. No tempo, cada um foi se apartando, criando famia, até primo Ambrósio cabou na cidade.

Silêncio.

- Casei não Baldino, passei perto dessa alegria. Ela era muito formosa, morreu dos peito, muito nova. O casório tava de data marcada e tudo, morreu nos meus braço, cum minha jura de querê outra não. Dia do enterro foi dia do casamento. Mais foi triste não, foi só silencioso. Daí que veio o gostá de acumpanhá os enterro. Silêncio demais, hora de ficá só com os pur dentro, é respeitoso com a sina. Vida miúda, né Baldino?

Baldino emocionado:

- Nos miúdo que tá os graúdo, Joaquim.

Silêncio.

- Sou da beira do Veríssimo, Joaquim, de frente de Minas. Herdei estrada de pai tropeiro, criado sem eira. O lugar era garimpo de diamante, a mãe ficou enterrada lá, nem alembro dela. Peguei gosto pela lida, num tem lugar nessa chapada que num negociei. “Óia o Jerômo Minino chegando ...” Jerômo era meu pai e o minino era eu. Jerômo, meu pai, descansou velho já variano, mas nos caminho. Foi numa noite escura, no pouso dos Conjeto. Pensei quietá por lá, vendi a mulada com as arriatas e a mercadoria, fiquei só com Ojero. Agreguei nos Conjeto, mais sentia falta dos caminhos e do ofício. Foi quando apareceu os ciganos e conheci Diolina, que me trouxe p’ra estrada e me fez passá o dos pior. Dizia que era de todos os home que quisesse. Eu tava enfeitiçado, Joaquim. Tulerei aquilo mais de ano e um dia não pude agüentá mais, cacei meu rumo. Inda cum fornecimento, recomecei minha lida. Compromisso de ofício que honro até hoje. E Diolina nem prá lembrá serve. Ocê tem razão, é miúda sim, Joaquim.

Silêncio.

A hora do acontecer, acontece.

Na passada, no vau do Lajeado, Borborema escorrega as patas traseiras. Joaquim cai de pescoço na pedra. Baldino desmonta correndo para socorrer o amigo, gritando seu nome, mas Joaquim está morto.
Com a noite engolindo o dia, Baldino desponta na Meia Légua. Joaquim atravessado na sela.
No pouso, ninguém, curral vazio. Baldino chamava pelo vaqueiro Legário, por sua mulher, nem viva alma.
Quando já acabava de arrumar o defunto em cima da mesa da cozinha, Baldino ouviu, primeiro, o barulho de cachorro, depois o menino Tobias, com a lamparina na mão, indo pelo caminho.

- Minino Tobias, onde tá o povo daqui?

O estalo fez o chão tremer. A cerca do pastinho enrolou os arames em fogo. O menino que ia passando nem ouviu os gritos de Baldino. Desandou numa carreira danada.
Céu derreteu pesado, enchendo o Vai Vem em minutos. Por toda a noite água caiu. Baldino ali, sozinho, com Joaquim.
No amanhecer do dia o corpo já apodrecia; sem aparecer viva alma.
Da janela da cozinha, ele avista o morro da Catarina e a ponte do Vai Vem encoberta pelas águas.
Baldino avalia que ninguém pode passar e, devagar como se rezasse, embrulha o corpo de Joaquim com os baixeiros. Amarra com um laço, enquanto diz baixinho:

- Caixão teve... caixão teve...

Baldino atrela Borborema e Ojero na carroça, onde põe o corpo de Joaquim e segue pelo caminho do cemitério.
A porteira aberta, os sanhaços cantando por todo o caminho na barulheira da manhã nascendo estiada.
Baldino no dentro do pensamento:

- É miúda sim, Joaquim, é miúda sim...




°°°


Forquia


No Ritiro da Meia Légua ficava a Invernada do Piquizeiro. Na distança de légua, a Invernada do Ataio, onde fiz casa de morada, cheia dos conforto. Tamém a ponte do Sapé emendo das duas na sede da Forquia, nus alto da Encruziada.
No abri da estrada foi fácil, só o passá de Lopoldo cum o carroção cheio de pedra. Fazê a ponte, essa sim, deu trabaio.
Era casá pedra com pedra, parecença duma cum parecença d’otra, travano essa uma cum aquela. Era ajudá Tio Rumiro, cunhecedô dos fazê barro ligoso prá garanti o sustento das pedra, até o pôr dos tronco lavrado no machado, labuta de Joaquim Pirracento, esse trabaiava subiano e juntano capim mode laçá os barro no dá a liga.
João Dico mais Lopoldo, cum o carro de duas junta, Lambari mais Cafuncho, na canga da frente, em carregação das pedra, ajudô erguê a ponte nos poco dia p’ro São João e na promessa de chamá Zarias prá tocá e matá um boi.
Cunhici Lopoldo, ele durmia embaxo duma sucupira no mei do cerrado, aculhi ele. Quando casô, fui padrim. Num deu sorte, a muié morreu cum menos de ano. Lopoldo tomava bênça todo dia, me tratava de seu Lino. Devotado, agregô na famia.
Durmia no paiol, conformado cum a vida, fazia tudo que a Bibiana pidia. Ela ia sangrá porco, chamava Lopoldo. Ia fazê sabão, pidia Lopoldo prá fazê a dicoada.
Joaquim Pirracento, cunhici no ofício, donde era o maió fazedô de carro de boi. Aquele nosso, ele que feiz. Nasceu no Curvelo, em Minas, i’eu num sabia onde era não, mais achava aquele nome uma buniteza.
Era tinhoso, por isso o apelido Pirracento. Se ele num fosse cum a cara do sujeito num pegava o sirviço. Mesmo orgulhoso, num importava das brincadera de Tio Rumiro falano que a ponte ia ficá cum jeito de carro de boi. Paricia inté que gostava da falação.
Na passada do tempo, a Forquia ia tomano jeito, o gado cada dia mais bunito, muita fartura. Só teve uma seca castigadera que nóis passava o dia intero levantano o gado no pasto. Mais nesse ano mesmo, rompemo na fartura. Até uns cobre que divia, paguei no trato.
O toque da vida era esse um, muito trabaio, mais vida sussegada. A labuta era vergá no sol, fosse na poca roça que tocava, só o do sustento, fosse na lida cum gado.
Nesse tempo, pareceu na Forquia dois homi a mando do banco, fereceno vantage de uns cobre prá omentá o prantado. Bibiana pois armoço. Cumero, ispiculano de um tudo, intardecero nos triero, rumo do Cavaiero.
No dezembro, cumpadre Quirim passô cum boiada, careceu poso e, no proseio em roda do fogo, falô dos homi do banco, perguntô meu intendimento.

- Cumpadre Quirim, num é do meu carecê, quando foi os cobre do seu Waldemo me valeu. Hoje a Forquia tá rumada é só num tê ismazelo. Fazê roça grande, com vantage dos cobre do banco, quero não.

- Pois é cumpadre, i’eu careço de fazê roça, currá novo, dá meiora na casa.

Passado o setembro, ele apareceu cum a famia, nóis feiz uma pamonhada e ele contô que ia fazê o tal impréstimo, se eu prestava garantia de assinatura.

- Cum obrigação, cumpadre. Respondi.

Em combinado, viajamo junto, assinamo os papel e ele pois a mão nos cobre cum satisfação.
No, um ano e mei passado, castigo da seca, cumpadre Quirim cai de cama, doença dos peito, num levantô mais. A viúva, no decorrê do luto, num deu conta da lida e ninguém acudiu. Nem i’eu, num era do meu sabê, o seu carecê.

- Pai, tem dois homi do banco aí.

- Tarde.

- Tarde, apeia.

- É sobre o aval que o senhor deu ao falecido João Quirino, a dívida está vencida e como o inventário demora, o banco resolveu cobrar do avalista. O senhor tem trinta dias para comparecer ao banco.

Nem apiaro.
Saí na vergonha da humilhação p’ra rua, fui batê no banco. Num tinha acordo. Corri na casa de Waldemo, ele tinha imprestado os cobre cum prazo de ano, no corrê das porcentage. Avuliei ali que meu nome já tava sujo. Vortei p’ra Furquia, reuni o gado, contei e fui batê no curtume do Neném Teodoro, que rematô a boiada na bacia das arma, veno a minha pricisão.
No prazo de mêis paguei o banco na conta que eles feiz mode ivitá humilhação e garanti honra no nome.
Na réiva, vortei p’ra Forquia e incontrei os minino tudo duente; Bibiana tinha virado um fiapo, tussino e na febre, num guentô a semana. Naquele agosto interramo, além de Bibiana, meu mais novo, mais Tio Rumiro, João Dico, a mulhé e a fia. Tristeza de vida.
Era os invisivi tarrafiano nóis. Sobrô a terra e o mais véio, sobrô Lopoldo e meu boi Lambari, que quase tive corage de vendê.
Dipois de matutá pricisão, vortei no banco. Agora quiria labutá cum prantio, agora quiria os cobre cum porcentage, igual Quirim. Nos poco ia comprano um gadim e rumava o disfeito.

- O banco não está emprestando dinheiro para plantio, o senhor volta no mês que vem que vamos analisar.

Só vortei mais uma veiz e a prosa foi a mesma.
No carecê fui minguano, até dispô da Forquia, tamém na bacia das arma.
Hoje trabaio, mais meu minino, aqui cum meu patrão, Joaquim Pirracento, fazeno carroção, carroça, portera e ponte.
Lopoldo casou cum a viúva de Quirim, inda antonte passô pur aqui.

- Como vai seu Joaquim? E prá mim.

- Bom dia, Lino. E passano a mão na cabeça do meu minino.

- Tá bom, meu filho?




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Breganhapareceu agora na minha lembrança
um caso do diabo que se assucedeu...
muitos ano atráis
lá nas bera do Ri do Braço

Rosinha ruim dos peito nem ia iscapá,
famia tudo avisado, a mãe, as irmã, as tia
puxava reza, fazia promessa
era uma consumição vê ela daquele jeito
benzedô num dava jeito,
dotô só balangava a cabeça desacorsoado
i’eu no meu canto
me apegava com pai de todos e nada
foi aí que resovi chamá o dêmo
e fazê breganha
vida de Rosinha prá cá
arma pecadora prá lá

foi como se o coisa ruim tivesse esperando,
de repente Rosinha miora,
fica boa que os dotô e benzedô num creditava
vinha de longe prá vê

i’eu no meu canto
isperano o rabudo cobrá o trato
numa tremedeira nem durmino tava
e deu-se um tempo
desalembrei do beiçudo
que num vinha acertá
um dia tano tocano boiada
só animá pejado de brabeza
e muita pricisão de chegá
no relance
apareceu o vermelhão,
o ronca quente, capeta no duro
pele carroquenta e chifrão afiado

- vim te buscá

- agora num vô, tô cheio de sirviço

- trato é trato

- tem que isperá

- vou te levá

- agora num vô, tô ocupado

- ocê tratô tem que pagá

- pagá i’eu pago, mais tem que isperá

dipois de muita discussão o gramulhão intestô
e bufando veio prá riba de mim
i’eu num devorteio
garrei o rabo dele e dei um nó
o bichão saiu pulando,
peidando e cagando fidido
era bosta do dêmo prá tudo que é lado
do Carvueiro até a Meia Légua
ficou uma catinga só
no rasto do beiçudo
pulano cerca

dafeita que o feioso nunca mais vortô
i’eu num temo a morte pur sê coisa certa
mais arma minha na rezança do céu
vai parecê não
°°°

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Júlia Partera


Era custoso o preparo da terra, o plantio e a lida, o cuidá da roça até o colhê. Inda tinha que esperá o tempo certo da chuva prá tudo isso e depois infrentá as capivara cumeno o roçado, inda fora de hora, como se fosse à-meia nossa labuta.
Foi aí que pareceu na idéia a arapuca.
Seguino no triero, abrimo deiz buraco de mais de dois metro, tampamo cum foia de buriti, modo que quando elas viesse cumê, caísse neles.
E deu certo. Teve dia que chegamo a pegá cinco delas. Aí era marrá no laço e puxá, depois sangrava uma a uma. Na primera veiz, num sabia como lidá com o bicho. Mais Miguilina perguntô prá seu Juvito mais dona Divina e eles explicô prá tirá o coro, depois tirá a banha que formava outro coro, ficano a carne que era boa de fazê armôndega e guardá na banha de porco. Durava ano.
E foi o que nóis feiz, enfileramo oito lata de banha de porco, enchemo de armôndega de carne de capivara. Zefa já perto de discansá, enjoano cum tudo que era de cumê, nem na cuzinha foi, fizemo tudo suzinho, eu mais Miguilina.
Na hora de fritá as armôndega, deu um lampejo e levei uma amassadinha cum farinha de milho e Zefa num istranhô; inda pois querença de mais.
Num teve injôo nem nada, foi o acabá das preocupação em tudo que cumia e num sustentava. Desse dia em diante, ela armuçava e merendava as armôndega de carne de capivara pega nas armadilha do triero.
Mesmo quando iscasseou a pega dos bicho, num sei se pur isperteza delas ou pur ismazelo nosso no preparo das armadilha, Zefa foi até discansá sem fartá as armôndega, que era só o que ela cumia.
Nasceu Laurino, grande, forte; a partera nem acreditô, lembrano os injôo de Zefa. Daí em diante, virou recumendo seu: cumê carne de capivara desde o primero mêis. A receita ajudava a afamá ela no Vai Vem. Quando as muié embuchava e cumeçava a baldiá, era só chamá Júlia Capivara, ela dava jeito.
Era assim que ia pono o cunhecimento nessa fartura, lugar mais abençoado e de tudo pur fazê, o povo trabalhadô dimais, mas meio sem idéia das coisa. Pois olha que nesse tempo eles fazia a derruba do mato p’ra roça e num distocava. Ficava o milho e os toco. Desses, só colhia o estrovo no passá cum arado.
A primera veiz que Juvito viu a que fiz, ele pois reparo na trabalheira que dava. Mais quando coí os primero carro de milho ele num acreditô no rendê do plantio. Hoje ele prepara milhor a roça. Inda aprendeu a esperá a cheia mode favorecê a distoca.
Juvito ficou meu cumpadre. Dei a caçula, Duvigis pr’ele batizá e ele pois querença d’eu batizá o dele tamém, que envinha nos dia. Nóis ficô isperano o nascê.
No dia, quando Neco Talagada foi chamá a partera, na passagem deu aviso, e num vortô. Júlia Capivara num passô e nóis incomodô. Zefa num agüentô, bateu lá.
Eu e Juvito pegamo o triero atráis de Neco mais a partera. Neco encontramo na venda bebeno.

- Onde tá a partera?

- Seu Juvito, ela foi na mesma hora, já divia ter chegado faiz tempo. Eu parei prá molhá o papo, ela já em ia longe.

Saimo os três pelos triero procurano. Neco, já meio tonto da pinga, cambaleava na frente. Quando passamo perto da roça, onde tinha as armadilha, Neco, na frente, parou na primeira e olhou dentro do buraco.

- Isso é hora de pensá em caça, Neco? Onde já se viu.

- A capivara tá aqui, seu Juvito.

- Ponha tento Neco.

- É ela seu Juvito.

Era Júlia, a partera, que tiramo do buraco, das mais infezada.

- Tenha mais respeito seu cachaceiro. Dizeno p’ro Neco.

Quando chegamo na casa de Juvito, a Zefa já tinha aparado o minino e tudo corria bem.
Batizamo o Tércio mais Duvigis junto, dos dois, a madrinha foi a partera, modo de acabar com a disfeita do buraco.
E, desse dia em diante, nunca mais chamamo a cumadre de Júlia Capivara.




°°°





Chifre queimado


De cócoras, na soleira da porta, Bento tentava, com o tição na mão, acender o chifre que não pegava fogo de jeito nenhum. Muita impertinência, imagina dois dias no borralho e o fogo não pegava. Resolvido, voltou à cozinha e, com o ferrão de Tenório no oco do chifre, enfiou no meio do braseiro.
Foi o que bastou. Zumira ao entrar já foi logo deitando falação. Aquilo não aceitava. Onde já se viu misturar aquela catinga no feijão que cozinhava desde cedo. Lugar de homem não era na cozinha. Se a simpatia de espanto de cobra fosse aquele fedor, que ele queimasse o chifre lá no curral, que ficasse longe do fogão.
Bento saiu no terreiro ainda com o chifre enfiado no ferrão. Tenório, que chegava suado da lida, reconheceu a vara pelo entortado do cabo. Já foi logo enfezando com o cunhado. No consentir de quem ele estava usando o ferrão? Ainda mais naquele uso inadequado. Para que queimar o chifre? Se fosse espantar cobra não era assim que fazia, tinha que ralar o chifre e misturar com estrume que encorpava a fumaça. Bento, contrariado com a falação, devolveu o ferrão e foi até a casa do vaqueiro Osório emprestar um ralo.
Depois de quase a tarde inteira que Bento estava pelejando com o chifre, o vaqueiro viu que ele estava usando o ralo de fazer quitanda de sua mulher Izaltina. Maior ciúme dum outro objeto ela não tinha. Osório, sem graça, reclamou que Bento devia ter falado o que ia ralar. Se soubesse ele não emprestava. Para que ele estava fazendo aquilo? Bento contou da simpatia de espantar cobra, disse que elas estavam aparecendo muito no paiol e atacando as galinhas. Osório explicou que não era assim, de ralar o chifre e misturar estrume, tinha de raspar com a faca melhor de corte que tivesse na casa, juntar com pólvora e, também, que chifre secado em borralho de fogão não servia. Tinha que secar ele numa fogueira, acesa em noite de céu encoberto, sem lua e sem estrelas, noite de só breu.
Misterioso, Bento juntou as pedras e fez a fogueira. Depois de secar o chifre numa seqüência de noites bem escuras, passou quase um mês raspando e guardando dentro de um embornal. Dos cartuchos do cunhado retirou a pólvora e guardou em outro.
Seu Baldino, passando rente à cerca, parou num dedo de prosa. Bento, na curiosidade dele, foi explicando o que estava fazendo. Baldino lhe disse conhecer a simpatia, a raspagem do chifre estava correta, a pólvora também, mas pedra na fogueira não podia usar não. Carecia fazer uma bacia de barro, do tamanho duma braça, encher de gravetos. Só assim espantava as cobras. O efeito só seria duradouro se a simpatia fosse feita à meia- noite e quando acabasse de queimar, ele espalhasse as cinzas em volta do local.
Bento, com a bacia de barro pronta e os dois embornais pendurados no esteio do paiol, esperava ansioso a noite chegar. O cunhado, vindo do curral com o balde de leite na mão, mangou dele dizendo que nunca tinha visto homem mais sem opinião e que ele não tinha fé no que fazia. A simpatia tinha lá suas liturgias mas sem a fé não valia nada. Já que ele aceitava palpite de todo mundo por que não ouvia o Mané Benzedor, conhecedor por profissão e morando tão perto. Bento, quase na zanga com o cunhado, resolveu procurar Mané Benzedor que lhe deu todas as orientações. Explicou como fazer, corrigiu o errado, acrescentou o estrume na bacia de barro, mandou pôr, além dos gravetos, sabugos e palha de milho e que esperasse uma noite de bem breu.
Feliz da vida, Bento ficou esperando a melhor noite, determinado a não aceitar mais palpite de ninguém, nem falar mais no assunto, evitando apodo do cunhado.
Veio a cheia e nada. Na minguante deu a noite esperada, escura, fechada e sem vento, parecia noite cega de nascença.
Na paciência, com todos os detalhes, Bento preparou a bacia na porta do paiol, calculou o meio da noite e pôs fogo.
0 barulho foi seco, bum..., nem ressoou. O fedor foi exalando pelo ar e impregnando as palhas de buriti que cobriam o paiol, espantando as galinhas do poleiro. Foi quando Bento viu a sombra se transformar na figura que andava em volta exalando pior cheiro que a mistura que ardia na bacia de barro.
Dela ouviu, atrás do bafo, bem na sua frente.

- Cobra, que cobra levo.

E o coisa ruim sumiu do susto.

Cobra nunca mais apareceu lá e Bento morre de medo, na noite escura, quando começa exalar aquele cheiro de chifre queimado por todo o corpo.

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Atalho

Monjolo cascava o arroz, Zefinha catava feijão. Na roça, Dito Véio esfriava os calos da mão. O cabo apontado para o céu, encostado no peito, e o corte da enxada virado para dentro, onde ele limpava a terra do solado da butina.
A roça ficava de jeito que, do seu eito, ele avistava a janela da cozinha, enxergando Zefinha de longe. O pensamento distinguia ela, mais longe ainda, na formação das roças, na puxada do rego d’água, na doença do pai, e depois da mãe. Ia lembrando da menina nova sempre ao lado dele, pedindo garupa e ajudando tirar leite no curral. Lembrava até do dia que ela nasceu. E agora, avistando Zefinha na janela, catando o feijão, remoía por dentro o desassossego de ver ela tão moça, bonita e sozinha no mundo, mercê dos espertos. Ele foi o único que ficou, mesmo sem a paga, no esquecer dos anos.
Distraído nos pensamentos só viu quando já estava rodeado daqueles cavaleiros.

- Quem é seu patrão, nego véio?

Respondeu meio assustado levando eles até a casa onde Zefinha, já sem avental, esperava na porta.

- Que deseja, seu moço? – perguntou Zefinha.

- Tamo procurano dois preso fugido. Um tá atirado na perna, o outro é preto igual esse véio, nóis num sabe quantos tiro pegô. O rumo deles era esse, a moça viu gente estranha passá?

- Passou ninguém não.

Mal deram água aos cavalos e ganharam estrada.

- Dito, que será que os dois fizeram?

- Sabe lá minha minina, pelo tamanho da tropa, coisa muito ruim.

No decorrer de dois dias, Zefinha começou a dar falta dos indez que ela deixava nos ninhos das galinhas poedeiras.

- Dito, as galinhas num tão pono, que será que foi?

- Sei não, minha minina, será algum gambá? Vou pôr reparo.

Passou Dito Véio duas noites seguidas vigiando e nada viu. As galinhas não botavam mais. Aí começaram a sumir coisas: primeiro, foi a colcha de algodão da estima de Zefinha, depois uma panela de barro, um pedaço de toucinho do varal. Outro dia foi o facão do Dito.
Os dois viviam assustados o dia inteiro, os afazeres, às vezes, entretinha. Mas logo vinha aquele desconfio de tudo que mexia no redor da casa.
Estando Dito Véio na limpa da roça, com o sentido posto no em roda, viu a sombra no lado do paiol. Foi lá que pegou os dois, nem precisou levantar a arma, estavam caídos no chão, sujos, fedendo e magros de dar dó. O que estava atirado ardia em febre, o lugar do tiro inchado e cheio de pus. O outro não dava conta de carregar o companheiro, ia deixar ele ali e seguir só.
Zefinha atrás de Dito já foi dando as ordens.

- Vamos levá eles prá dentro.

Dito carregou o atirado e Zefinha deu sustento no apoio do outro, que mal dava conta de andar. Deitou o são, deu água, comida, enquanto Dito banhou, de bacia a perna do ferido já estendido no catre, delirando. Zefinha apanhou umas folhas de fumo no terreiro e preparou um emplastro de urina com fumo e pôs na ferida; deu chá de mamacadela com palha de alho, o homem foi sossegando devagar até dormir sereno. Seu companheiro não disse uma palavra, caiu logo no sono. Ela ficou a noite toda na cabeceira do ferido vigiando a febre dele, trocando o emplastro. Essa labuta durou dois dias. Enquanto ela cuidava, ia ouvindo a história da boca do de nome Zaqueu.

- Trabaio p’ro seu Cristino, ele é da pulítica lá da Bahia; prendero nóis ano passado, nóis num matô nem robô não. Seu Cristino defendia o povo das glebas do Arreal da Barrera, terra que Coronel Ladera pois cobro cum arrumação de papel e pulítica. Prendero nóis muitos mêis, mais em sala livre, enquanto o pai do seu Cristino era vivo. Depois foi na grade mesmo. Nóis iscapô pur ajuda do cabo Olino que veio fugino tamém, mais levou um tiro derradeiro na persiguição e ficou na barranca do rio. Eu mais seu Cristino, atirado na perna, garramo num toco e descemo quase dois dia intero até a barra desse córgo e vimo dá aqui.

Na semana seguinte, Cristino já dava demonstração de cura, já passava um tempo acordado, mas não dizia nada, ainda fraco, ganhando sustento nas canjas e nas beberagem que Zefinha fazia. Zaqueu já ia limpar roça com Dito. Da janela ela ficava vendo os dois no capino, sempre conversando.

- Minha minina, qué qui nóis vamo fazê cum os dois.

- Sei não. O Cristino inda tá muito fraco. Mas se aparece a tropa do governo nóis esconde eles na dispensa.

- Eles num vão vim mais, vão só cercá na barranca do rio pr’eles num vortá.

O tempo passando e um dia Zefinha que cochilava ao lado do catre de Cristino, tigela na mão, acordou com as dele procurando as suas. Ele sorriu e beijou suas mãos agradecido.
Conversaram o dia inteiro, ele pôs mais detalhes na história, contou da sua terra, da sua gente, da morte do pai, da sua sina, agora de sozinho no mundo.
No começo, andava escorando numa vara de tambu, que Dito escolheu no mato para ele. Depois já andava pela casa, encostando aqui e ali. Nesse tempo, ajudava Zefinha nos serviços da casa. E por fim já curado.

- Tá chegando o tempo de ir.

- Por que não fica, trabalho é o que mais tem. A terra é grande, eu mais Dito carecemo de ajuda.

- Num posso abandoná minha gente, tenho que voltá.

- Traz eles, o Zaqueu falô deles p’ro Dito. Aqui tem terra prá todo mundo, nóis ajuda no dismato. Agrega os que for possível.

- Minha minina tá certa, seu Cristino. Sou seu positivo prá buscá eles; Baldino tá perto de passá, sigo cum ele até a barranca do rio, de lá o senhor dá orientação.

Naquela mesma noite, Cristino e Zefinha dormiram a primeira vez juntos. Seis meses depois começaram a chegar os baianos no Sertão do São Marcos.




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Acabei com elas



Lindaura reclamava todo dia e Linoro fingia que escutava. Prometia providências mas, na verdade, não fazia nada. Ia levando no depois faço, até que fez mesmo. Catou estrume seco no curral do curtume e pôs para queimar, enchendo a casa de fumaça. Espantar as muriçocas? Espantava. Mas logo, elas iam acostumando com a fumaça e os da casa enojando cada dia mais daquele cheiro.
Aparecendo ali e nos vizinhos, em quantidade maior que o de costume, Lindaura pediu a Linoro para achar o lugar de onde elas vinham. Na mesma noite os dois foram no terreiro, com a lamparina na mão, e encontraram o foco na casinha.

- Traiz querosene que vou pôr fogo e matar o ninho, pediu ele. Lindaura lhe convenceu a esperar o outro dia de tardinha, hora que elas não tinham saído ainda, matava mais.

Ele acatou. No outro dia, com uma lata de quarto derramou o querosene na fossa deixando um rasto para pôr fogo de longe. Foi no borralho do fogão, acendeu um chumaço de palha de milho e quando ia chegando perto com o fogo... Bum. Só se ouviu o estouro da labareda sapecar o monte de lenha rachada e a copa das mangueiras ao redor.
A fossa exalando seus gases, somados ao querosene que ele derramou, explodiu, abrindo um buraco que engoliu até ele, espalhando sedimento e pedaços da casinha para todo lado. Foi um corre-corre danado. Lindaura gritava.

– Acode, meu Deus. Os vizinhos assustados com o estrondo e aquela gritaria, correram, de pronto, no tempo de segurá-la desmaiando.
Seu Ambrósio, mais dois passantes, correram para procurar e não encontraram Linoro em lugar nenhum em volta da casa. Sumira.
Dentro a consternação. Para todos ali, ele tinha voado com a explosão, caindo longe em pedaços. Era em volta do quintal em chamas que eles agora o procuravam. A casa foi enchendo de gente, chegavam só até a porta do terreiro para ver o buraco em chamas, sem aproximar. Dona Lindaura desesperada, em prantos, gritava querendo sair e procurar o marido. Batira, nora de seu Ambrósio, segurava, acalmando com chá de erva cidreira, e Deus sabe o que faz.
O fogo no buraco crepitava no queimar a lenha e o que restou da casinha, quando seu Geraldinho Mulato transpôs o umbral da porta descendo o degrau para o terreiro, querendo ver o acontecido, a madeira queimando estralou mais forte e um vulto saiu de dentro do buraco. Seu Geraldinho identificou como o diabo em pessoa, por causa das duas pontas do chapéu que sobrou e do corpo queimado, uma mistura de carne viva com o sedimento da fossa, como se o buraco tivesse dado nas profundezas. Deu um grito e saiu correndo sem olhar para trás.

– É o diabo. Passando dentro da casa cheia, derrubando tudo pela frente até ganhar a rua .

O povo que enchia a sala, no curioso, seguiu ele gritando.

- Cruz Credo, Ave Maria! O buraco deu nos infernos, o diabo saiu de dentro da terra.

Quem procurava nos arredores os pedaços de Linoro, ouviu aquela assuada, na gritaria correu, também, sem saber direito de quê.
Sobrou só dona Lindaura e Batira que levaram o maior susto quando Linoro adentrou pela cozinha, surdo, todo chamuscado de fogo e lambuzado de merda, ainda com o chumaço de palha na mão, olhou para mulher gritando;

– Acabei com elas.




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Baltazar de Das Dores

Vagava na chapada, havia mais de vinte anos, conhecia ela como a palma das mãos, caminho, atalhos, jeito de chegar. Era Baltazar. Uns diziam que era descendente de ciganos, outros que era dali mesmo. O certo é que cruzava aquelas terras, trabalhando ora aqui ora ali, sempre muito considerado por todos. Da família diziam que só restava ele.

- Seu Baltazar, apeia.

- Cumo vai dona Filó? Bom dia, seu Aniba.

- Dia. Chegô na hora, Filó cabô de passá um café. Achegue.

- Cum gosto, seu Aniba, cum muito gosto.

Ali mesmo, entre gole e prosa, tratou do serviço. Na preferência de Baltazar, trabalhar ali era o melhor. Fosse pela paga, fosse pelo trato, além de poder pôr os olhos em Das Dores, que quanto mais passada do tempo, mais boniteza acumulava. Em sendo filha única de seu Aniba e dona Filó, ficava no vantajoso da herança, mas isso não era cobiça de Baltazar.
Das Dores, moça donzela, jeito de menina ainda, apesar do maduro nos anos, vivia na conformação de solteira vida afora. Bonita, isso sim, ela era: o rosto, os olhos claros, os cabelos lisos sempre presos para trás, e o corpo escondido naquele mesmo jeito de se vestir. Baltazar não tirava a atenção dela. Coisa que seu Aniba logo avaliou nele foi a bem querença escapulindo nos olhos, nessas horas.

- Seu Baltazar, já pensô tomá sussego na vida, pará num canto, radicá?

- Dô prá isso não seu Aniba, ponho custumação in lugá ninhum. Ponho gosto é nos caminho, na istrada.

- I’eu mais Filó tamo ficano véio, nóis só tem Das Dores e a terrinha. Se nóis fartá é ela só no mundo.

Numa pausa.

- Faço cumbinação, cunheço ocê prá mais de vinte ano, ponho reparo nos oiá docêis dois, fereço a mão dela e tudo que carecê.

- Na honra fico seu Aniba, no acanho de respostá tamém.

A conversa acabou ali. No outro dia, nem a paga Baltazar esperou. Ganhou estrada.

Dois anos passados.

Das Dores estendia as roupas na frente da casa para quarar, quando avistou no longe o cavaleiro, caminhou até o batente da porteira, enxugando as mãos no avental. Distinguiu Baltazar ainda no longe. Seu coração disparou; sem pensar muito, abriu a porteira.

- Cumo vai, Das Dores?

- No custumá, em como Deus qué.

- E seu Aniba, vim tê uma prosa mais ele.

- Foi na rua cum a mãe, apeia.

Baltazar desceu do cavalo, levou o animal para o cocho e sentou na soleira da porta.

- Nem fiz armoço ainda. Se quisé merendá, a mãe dexô quitanda feita. Vô passá um café.

- Carece não, Das Dores. Gradeço. Sabe do assunto qui quero pôr trato cum seu pai?

- Magino, mania do pai querê rumá casamento de cumbinação, mais quero não, quero só se for de bem querê.

Baltazar ficou surpreso e envergonhado, disfarçou o quanto pôde, tentou mudar o rumo da conversa, mas ela insistiu.

- Foi pur isso que ocê sumiu, igual fugino, foi o pai?

- Cumbinação foi não, ele só falô que punha gosto.

- E ocê põe?

Ele ficou um bom tempo pensativo, meio encabulado, sem saber o que fazer com o chapéu que tinha nas mãos. Mas respondeu balançando a cabeça afirmativamente.
Das Dores abriu um sorriso e falou bem baixinho, enquanto olhava Baltazar bem nos olhos.

- Brigado Santo Antônio.

Ele, por sua vez, sentiu o coração bater mais depressa. Nunca tinha sido olhado daquele jeito antes. Conhecia o afeto de muitas pessoas encontradas vida afora por onde seu caminho levava, nada como o que Das Dores demonstrou com aquele olhar. Os dois parados no meio da cozinha, água fervendo no fogo, nem notaram a chegada de seu Aniba e dona Filó que, da porta, os olhavam. Seu Aniba tossiu e pôs o quebrar naquele momento.

- Cumo vai Baltazar. Veio recebê a paga?

- Vim foi pôr trato de casamento cum Das Dores, se ainda é do agrado do sinhor e dela.

- É do seu agrado, minha fia?

Ela, baixando o olhar, sem graça:

- Se for do seu, pai, do meu é.

- Vamo cunversá lá no terrero, seu Baltazar.

Estranheza de Das Dores, que conversa seria essa? O pai vivia tentando arranjar marido para ela.
Tomando o rumo da cerca, seu Aniba foi pensando na conversa que tivera com ele, no seu sumiço de dois anos, e em toda aquela situação repentina, agora.

- É de seu querê mesmo? Tá resorvido tomá sussego? Puis reparo no que aconteceu dois ano atráis.

- O sinhor sabe da minha andança, que sô respeitadô; nesses dois ano garrei a pensá na vida. Das Dores tá no meu pensá faiz muito. Fugi no acanho de num sabê do gostá dela. Agora sei.

O casamento se realizou meses depois. Os dois viveram o primeiro ano sem filhos; no segundo, nasceu o primeiro e, daí em diante, foi um atrás do outro, para alegria de Das Dores. No todo, doze.
Baltazar tomou amor pela lida e, uma vez por ano, levava o gado para vender no curtume. Demorava mais que o necessário, mas era do saber de Das Dores que ele corria a chapada toda matando a saudade das gentes e dos lugares. Mas quando voltava, era como no dia em que pediu sua mão. Tocava o berrante no longe e chegava sempre cantando.quando ando no sertão
careceno pricisão
eito prá invergá o corpo
sei que num farta não
quem me é de valia
ladainha creio
rezei tantas
esqueço não

Das Dores largava tudo o que estivesse fazendo e o esperava com a porteira aberta e a quantia de amor que cabia no seu olhar.
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Perpétua


Ela cardava o algodão ensimesmada, triste e calada, aquele choro miúdo para dentro. Lembrava Altino, Eleonora e o pai, sentia tristeza sentada no canto, nem o gato Beleu, brincando com os novelos, lhe tirava dos pensamentos.
Pensava no para trás da vida, lembrava do dia que Altino chegou, empoeirado, arrastando a perna quebrada e ela o socorrera. Lembrava daquele olhar que lhe dera, do prazer de rasgar a perna da calça, os dois sozinhos na casa inteira, no dia inteiro. O pai mais Eleonora chegando de noitinha com trovejo e uma chuva miúda, perguntando quem era estendido no catre da sala, aquela brabeza de sempre, condenando tudo que ela fazia.
O interesse de Beleu, passando de um lado para o outro, encostando na perna sã de Altino.
Doía recordar, a invídia da irmã manifestada na hora que o moço acordou, o interesse do pai quando soube ser Altino sobrinho do seu Rubilão da Malhada, fazendeiro próspero e conhecido de todos, a melhor terra do lado de Minas. Antevia ele casamento, não dela, sempre restando, mas de Eleonora. Acabava assim, com o encanto de ter sido notada por Altino.
Lembrava da conversa na cozinha, sentados no banco rente ao fogão abrandando o frio que a chuva trouxera, e daquele vento esparramando carusma na toalha que Eleonora, exibindo as prendas, punha na mesa. O olhar perdido e a voz dele explicando o tombo na grota e o desnorteio do rumo. Quando encontrando o dela, era como se a chamasse de anjo.
Cardava devagar aquelas lembranças, misturando-as ao algodão de primeira apanha, nas lágrimas escondidas no olhar distante, sentia a inveja da irmã e o desprezo do pai, ainda ali, naquela casa vazia, sentindo ainda o cheiro dele. Ouvia sua voz, no longínquo do pensamento, pedir a mão de Eleonora. Quanta vontade teve de chorar na hora, e mais ainda, quando sozinha no quarto.
Ajudando preparar a viagem do pai e da irmã para casa dele em Minas. Vontade de chorar, mas só o fez por dentro. Sozinha aqueles meses todos e depois quando convivia com eles casados, morando naquela casa tão sua, tão só sua, vontade de chorar.
Lembrava de esforçar naturalidade quando via chamego entre os dois. Quando começou a pensar em fazer, não lembrava o momento exato, ficou perdido na memória, resvalando entre o dia em que os vira nus, se pertencendo, e quando eles e o pai a apartara duma conversa a respeito da lida na fazenda.
Lembrava o escorralho da caneca de alumínio que ela limpou bem antes de devolver ao criado no quarto do pai. Ele não devia nem ter sentido o gosto do veneno ao tomar de uma vez a água que sempre levava à noite para o quarto. Para Eleonora e o marido ele morrera de repente e assim foi enterrado.
Foi o tempo mais difícil e que ela lembrava mais fácil, quando os três ficaram sós e ela se submetia, quase com servidão, aos mandos da irmã que não falava em dividir as terras, igual o pai fez quando a mãe morreu. Sempre deserdada de carinho. Às vezes, Altino reparava e tentava bondade com ela. Quase iludida, teve dúvidas no que planejou fazer, mas fez.
Foi numa noite enluarada, daquelas que dá gosto ver as estrelas recamadas no céu. Foram dormir tarde. Perpétua fingiu passar mal e pediu para irmã ficar no quarto com ela naquela noite. Por insistência de Altino, Eleonora concordou.
Na madrugada, o travesseiro no rosto da irmã e o corte na garganta não permitiu nenhum grito. No raiar do dia, pouco se ouviu ele gritar enquanto debatia com o azeite fervendo ouvido a dentro, escorrendo, e ela falando...

– Adeus meu amor.

Era tão exato o calor queimando os dois ali no pensamento e tudo que deles tinha o cheiro. Seu olhar, ainda, refletia aquelas chamas distantes. Enterrados num canteiro de cravos nunca cuidado, esquecido, debaixo de sua janela, sempre fechada.
Ela cardava o algodão ensimesmada, triste e calada. Cardava no canto daquela sala antiga, suas lembranças, dor sem dor, esperando chegar alguém. Olhava distante Beleu brincar com o mosquito na soleira da porta, esperando naquele mês chegar alguém.
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Ojero


Gostar eu gostava, não só do velho mas da lida toda, dos companheiros, o saber dos caminhos, vida de tropa, gostava sim. Importava com carga muita não, passar nos facões e nos serrotes era pior, mas muito, não. Às vezes, as bruacas até rangiam no esforço do descer e subir. Comer, só no bornal, o milho que o velho escolhia para dar trato do de melhor. Assim era o cuidado com a pisadura, na hora de pôr as peias.
Nos caminhos, gostava mais do trato, zelo de Baldino colocar a cangalha no lombo, encabrestar, arrochar a cincha, abotoar o peitoral, descer a retranca e enlaçar as alças no cabeçote dos alções. Arrumar os sacos, bornais, surrões. Fazer os contrapesos e amarrar o ligal no arrocho, com o cambito, e soltar o cargueiro. Depois amarrar os guizos nos peitorais e cabeçadas.
O ruim era o carrego, quando o velho deixava por conta do empregado do seu Vieira. Muito desmazelado aquele sujeito, quantas vezes a carga caiu com o cambito frouxo. E a vez que ele deixou cair ali mesmo uma lata de querosene, e derramou. Quase pôs fogo em tudo, porque o passante estava riscando a binga para acender o cigarro de palha.
O descarrego, esse, Baldino nunca deixava ninguém pôr a mão, por causa do equilíbrio da carga. Quando parávamos no pouso, depois do descarrego, ele escovava um por um, naquele jeito dele de pôr reparo num trote a mais, na guia descuidada ou num descer facão mais brusco.
Eu só desacorçoava quando aparecia um corte para varar. Uma a uma no trieiro e não rendia o caminhar, parecia que estava passando de novo no mesmo lugar. Agora, quando chegava no tope do morro, principalmente no Cobertão, dava gosto enxergar tudo dali de cima. O velho também gostava desse lugar, sempre o preferido do pouso.
Trote era o que ele mais punha reparo.

- Só serve prá cansá o animá e num omenta a paga. Dizia.

Nesse ponto tinha razão. Só o Pacu achava que não, gostava dum trote. Quando distraía e punha marcha, me passava na cabeçada chacoalhando os guizos mas, quando percebia, emparelhava comigo, no respeito.
Gostava muito não, quando Baldino negociava com pólvora e carga muita, ainda mais que o palheiro num saía da sua boca hora nenhuma. Ou então quando tinha muito negócio com couro, aquilo fedia demais.
Minha preferência era quando carregava fumo com contrapeso de rapadura. O cheiro bom, o peso distribuído melhor e não tinha perigo.
Nos pousos, enquanto Baldino negociava ou contava as notícias da política para os figurões, cada um com a montaria mais bonita que o outro, era o de bom, cada mulinha mais formosa. Aquelas arreatas, muito bem cuidadas, uma boniteza. A companheirada gostava da alegria dos olhos.
Mas meu querer mesmo estava ali, do meu lado, e ela era bonita demais. Nova, castanha, o pêlo brilhava de longe, e os olhos, no jeito de me olhar, minhas pernas bambeavam. Vaidosa na medida da sua boniteza; sabia enroscar seu pescoço no meu, na demonstração de bem-querença. Tão alegre e vezes tão triste.
Quando conheci novinha demais, mesmo assim, pus o olho nela e fui criando, no acompanho dela crescer, o amor todo.
Baldino punha muito gosto em agregar ela na mulada, de vez em quando me falava no ouvido, enquanto escovava meu pescoço:

- Um dia nóis agrega ela, Ojero.

O dia chegou, e nesse dia foi tristeza demais que chegou junto. Foi dela que Joaquim, melhor amigo de Baldino, caiu. Foram suas patas que resvalaram nas pedras do Vau do Lajeado, derrubando ele.
Nunca vi tanta tristeza como a de Borborema, naquele dia, puxando a carroça de parelha comigo. Desconsolo demais, nem prestou atenção quando Baldino fez a paga para levá-la.
Parecia até, que no enterrar Joaquim, também dela um pedaço ia junto.
Seguindo caminho, ela do meu lado, vez em quando enroscava o pescoço no meu, olhar escorrendo tristeza. No choro dela.
Todas as vezes que a tropa chegava no pouso do Braço, Baldino me desencangalhava primeiro, depois Borborema, abria a porteira e nos soltava no rumo do cemitério, onde passávamos horas, ela meio que chorando. Depois, a volta, bem juntinhos num silêncio só.
Borborema ao meu lado, guiando comigo a mulada no tempo passando. Às vezes, a alegria está toda nela, como antes. Em outras, a tristeza toma conta. Quando a alegria vem, Baldino percebe e fala no meu ouvido.

- Hoje Joaquim tá aqui cum nóis.




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Valentia

Desgoverno nas idéias, no tolerar a vida em pirraça constante, serviço faltando, doença demais no em volta, alegria nenhuma, nem as miúdas. Custoso dormir, acordar mais ainda. Ver no dia-a-dia o corpo faltando, como ir minguando vida a fora. E para quê? Ver o patrão não fazer para o anteontem, eu junto, juntando o quê? Recebendo pagamento só no depois de amanhã, ainda com arrelia dele por coisa pouca. Para que o estorvo de mulher tolerar?

- Olha os remédios!

- Não come gordura!

- Está fumando demais!

Era vida?

- Por que não aposenta?

Isso era proposta de fazer? Os filhos morando longe, todos por conta própria. Fazer o quê? Acordar, ficar esperando o serviço aparecer, se aparecesse de manhã, sumia de tarde. Esperar o almoço, o jantar e depois a conversa igual na porta, tomando a fresca. Agora era homem de tomar a fresca?
Fartura de expectativa, renego um tudo de tempo que até podia lembrar e ir tapeando, mas não tinha saudade de nada do para trás. Queria era o na frente e o na frente só vinha o detrás no lembrar, da prosa do vizinho, da mulher, do negócio que o patrão recordava como se quisesse valorizar minha permanência, que ele pagava no atrasado, mas pagava. Vida essa.

- E Deus, precisa acreditar em Deus!

- Por que não vai numa igreja? Reza um pouco, alivia!

Isso era conversa? Não é queixume esse meu de homem indefinido. Fiz coisas importantes? Fiz não, ninguém fez, todo mundo vai é fazer. E eu rezar, virar lambe hóstia, contar o do dízimo? Queria era solavanco, aventurar no novo, no em ir. Mas para onde, fazer o quê? A vida perseguiu tudo só no de comum até hoje. Nenhum feito, nada que relembrar dava o prazer de ser maior, nem um pequeno gosto em conversa de tomar a fresca. Queria minguar, mas na valentia e na consideração de todos, graúdos e miúdos, ou então saber contar o quase nenhum da vida e deixar o ouvinte no interesse, na alegria ou mesmo na tristeza. Conhecia gente que também tinha pouco no ir vivendo mas, quando contava, quem ouvia, ouvia calado, ria, prestava atenção.
Tomei a decisão numa tardinha, embrenhar no mato como vim no mundo e esperar a hora chegar, sem lamentação da demora e sem a pressa de acabar logo com aquilo. Caminhei muitos dias e muitas noites no mato fechado, mais que pude fui entrando, sem a noção do tempo, procurando o pior e nisso fui vendo uma valentia tomar conta, um lembrar do que não dava valor.
Aí apareceu ele.

- Cabra miúdo, miudeza eu levo.

Naquela hora, o desaforo ajudou a ferver meu sangue e na luta com o tinhoso, o que primeiro achei para segurar foi seus culhões e ele os meus. Assim ficamos sete dias e sete noites, eu tolerando aquela dor e ele também, na maior parte do tempo os dois com a pega afrouxada, fingindo camaradagem.

- Num veio findá, miudeza? Ele dizia.

Eu apertava, ele apertava.

- Afrouxa que eu afrouxo, miudeza. Pensa que vai sair dessa prá ficar arvorando valentia? Vai findar miudeza!

No sétimo dia ele me soltou e sumiu como apareceu. Foi quando a febre tomou conta e fui minguando com aquela valentia, ali bem dentro de mim, sem poder contar para ninguém. Aquela valentia minguando junto, entrando junto na ausência, no escuro, no silêncio.


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Terra do Cobertão


A lua, vez em quando escondia, nas poucas nuvens do céu de agosto. O trote era puxado, mas o tempo corria e a pressa de chegar estava no comando da afobação. Noite já fazendo tempo no seu traçado, foi quando ele viu o clarão de fogueira no mato. Desacorçoou da afobação. O nariz sentiu, o corpo seguiu o cheiro que recendia da codorna assada. Era Baldino com a mulada, de pouso no Co-bertão.

- É de paiz, seu Baldino.

- Moço Teodoro, achegue.

E já foi retirando as almôndegas da lata de banha para dentro da panela, no reforço com a chegada de Teodoro.

- Lá envou p’ro Vai Vem, ter uma prosa cumprida cum Tó da Gumercinda. O sôr soube da disgrama que foi o nosso à-meia nas terra que o pai deixô. Ele tá me passano a perna, acha que sou besta. Coi’eu mais de vinte carro de milho, fala que foi deiz. Vendeu mais garrote do que bezerro que nasceu e fala que vingô pocos. O sôr sabe.

- Sei não, num labuto cum falação, num ponho disconfio em ninguém seu Teodoro. Sina de tropêro. Ele é seu irmão, avulie melhor, pode sê só falação.

Teodoro era só agonia. Não deu conta de acompanhar a mulada lenta de Baldino, em dois dias já se despediu e seguiu na frente a meio trote. Mais dois estava na vila, na porta da casa do irmão.

- Tó! gritou na porta da casa.

Ninguém respondeu. Ele apeou.

- É Teodoro, Gumercinda. Como vai, meu irmão? Que cara é essa?

- Quero reparti tudo que o pai deixou. Num tem conversa de à-meia, o que é meu, é meu. O que é seu, é seu. Ou então vamo p’ra demanda. Falou Teodoro.

- Que revolta é essa, meu irmão? Num põe tristeza nessa casa não. Vai banhá, Gumercinda vai matar um frango. Que desassussego é esse? E seus estudos?

- Quero não, Tó. Vamo dividir tudo que tô sem tempo.

Assim foi, para tristeza de Tó, que aceitou o que o irmão queria. Dividiram a terra, o gado, toda a criação. A casa que ele morava ficou para Teodoro, o melhor da criação também. Nem as queixas de Gumercinda queria ouvir, era como o irmão queria.
Foi assim que Baldino encontrou Tó, com a família em cima do carro de bois, seguindo no caminho do Cobertão. Umas vinte cabeças de gado, poucas coisas da casa, duas capoeiras com poucas galinhas.
Perguntar, não perguntou nada. O que fez foi abrir a lata, retirar as almôndegas; do embornal, a paçoca e ali, na sombra do caminho, acolheu Tó indo no rumo do começar de novo. Seguiram juntos por todo o caminho com o tempo de um sendo o tempo do outro. Sobre o irmão, nem uma palavra. Foi Gumercinda que contou tudo a Baldino, quando o marido distanciou, na chegada do Cobertão, procurando onde fazer o rancho.

- Tó, vou ajudá inté cobri. A mercadoria que num for de incumenda e for do seu carecê, dexo na paga do quando pudé.

- Gradeço o amigo, mais aceito só se for na breganha com o gado.

Assim foi feito, Tó escolheu de um tudo no necessário, o que não era muita coisa. Mas encomenda fez muitas.
Rancho feito, a panelada de galinha com pequi de Gumercinda; para Tó, o mato virgem de começar; para Baldino, o caminho da labuta diária.
No ano, Baldino passou duas vezes por lá, e a cada uma delas foi vendo em que Tó ia transformando o Cobertão. Roça para todo lado, gado bonito, muita criação, já tendo até agregado de à-meia. Cada vez mais encomenda, enxada, foice, querosene, butina vera cruz, sal luzente e pólvora. Às vezes, um agrado de peça de chita para Gumercinda.
Com dois anos, até rancho de pouso para Baldino estava feito. A terra toda formada, luxo de rego d’água na porta do terreiro, carroção novo feito por Joaquim Pirracento. Mas do irmão nunca mais falou.
No descarrego das mulas, encomenda do Manco, foi que Baldino soube a primeira vez de Teodoro. Devia no fiado da venda, mais de conto de réis; a sede nas terras que o pai deixou estavam virando uma tapera velha. Os agregados foram indo embora um por um, às vezes até sem paga nenhuma.
Num ano passado, ouviu falar que Teodoro tinha vendido tudo. Era visto somente no cavalo magro e na venda, atrás duma garrafa de pinga.
Foi perto do Vau do Lajeado, a duas léguas da casa de Tó, no Cobertão, que Baldino viu o cavalo sozinho com a rédea enganchada no espinheiro. Teodoro, achou no vau, todo sujo, fedendo. Magro de assustar. Ali mesmo que Baldino fez fogo, caçou perdiz, pôs no ensopado e cuidou de Teodoro por dois dias. Quando ele acordou, ainda fraco.

- Seu Baldino?

Baldino o deixou ali, com comida no jeito para uns dias e uma cabaça cheia de um chá de raiz; amarrou o cavalo perto e foi para o Cobertão, pedir a ajuda de Tó.
Chegando, avistou Gumercinda na bica labutando com capado, no lado dum tacho de sabão. Não falou nada, esperou Tó chegar.

- Ocê sabe do seu irmão, Tó?

- Desse assunto num trato nem cum o amigo Baldino. Tenho irmão, não.

Quando Baldino ia falar, a voz de Gumercinda gritando:

- Meu Deus, Tó. Corre aqui, depressa.

Era o irmão caindo de cima da sela, em pele e osso.

Meio ano passado, Baldino fez pouso no Cobertão; foi festa na casa de Tó e Teodoro, herança que o pai deles deixou.




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Mato Dentro

Dava medo, o mato ia fechando e fechando mais, até tampar como fosse uma parede, ninguém que ali andasse ia descobrir uma passagem, só se transpondo o emaranhado trançado de cipós enlaçando tudo e com a ajuda de alguém que já conhecesse bem o lugar. Não era o caso de Dalvo, mateiro experiente, já estivera algumas vezes naquelas brenhas mas nunca tinha achado o jeito de entrar na grota, saber o lugar certo nem supunha. Que vivia alguém lá, menos ainda. Mas ele era muito esperto no distinguir e na falta de quem, declarado conhecesse, ele se ofereceu. Ia com Zé Cosme e o patrão dele.
Já tinham caminhado bem uma hora no mato fechado, avistando por entre folhas a serrinha, e nada de encontrar o trieiro que o benzedor usava. Dalvo, com o facão tentava abrir caminho, cortando os cipós e pela posição do andar, vendo o morro, tinha quase certeza de que era ali, quando chegava perto, não era.
Num prazo, parando para tomar água e enrolar um cigarro embaixo dum pau mais frondoso, ouviram um barulho de bicho andando no mato.
- É onça, gritou Zé Cosme, engatilhando a espingarda e apontando no rumo do barulho. Antes que atirasse, Pai Nanias pulou de cima do galho no meio deles, o silêncio formou no susto que cada um levou. O primeiro a falar foi Dalvo.

- É pelo galho que ele passa!

E começou a rir assustando o benzedor, desacostumado com gente de qualquer espécie. Seu Laudêmio, percebendo que o susto foi maior nele, se aproximou e contou que estavam procurando um jeito de passar para a grota com o sentido de achar a casa do benzedor, se ele sabia onde era.
Já de cócoras ele perguntou, se mal pergunta fosse, o que eles queriam com o velho? E quem eram? seu Laudêmio explicou que eram do Arraial e precisavam com urgência de ajuda, que sua filha estava, fazia dias, de cama ruim dos peitos. Que tinham tentado de tudo, era grave e precisavam muito que Pai Nanias fosse benzer na derradeira esperança.

– Vamo em casa cumigo pegá umas ervas. E foi subindo no pau, afastando a galhada.

Era como se fosse uma escada, do galho até a pedra e desta para o trieiro que descia até o fundo do grotão. Aquela figura magra, barba e cabelo para mais de muitos meses sem cortar, jeito cadavérico, de gente que mal comia, dava medo.
Ele foi apanhando, dentro do escavado do morro, suas ervas e distribuindo em duas capangas que cruzou por cima da cabeça, uma para cada lado da cintura.
Voltar foi o mais fácil, ele pediu que alguém tomasse dianteira, e arrumasse um tacho de água quente e um lençol branco. Assim foi que Pai Nanias chegou na cabeceira de Rosinha e lá ficou duma tarde varando a noite até a tardinha do outro dia com suas rezas, suas infusões com fava de sucupira e seus emplastros.
Na boca da noite, sem que ninguém conseguisse entender, ele saiu do quarto pálido e sem dizer uma palavra, correu pelo fundo da casa no rumo do Mato Dentro, causando estranheza em Zé Cosme; quando se cruzaram na porteira, Pai Nanias resmungava o nome do diabo, como se esconjurasse o cujo.
No outro dia, seu Laudêmio e Dalvo foram até a grota agradecer Pai Nanias a reza e a benzedura que tirou Rosinha da cama. Levavam, além de muita comida, dinheiro, e por insistência de Zé Cosme, uma mula baia de presente que amarraram próximo à passagem para a grota. Lá não encontraram nem o benzedor, nem uma sobra das coisas dele, só o buraco vazio no Mato Dentro.




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Três Quartas da Limeira


Três Quartas da Limeira era o nome do lugar onde chegamos, mato ainda. O pai, a mãe, meus irmãos e o cansaço de muitos dias de viagem, seguindo com seu Baldino e suas histórias.
Lugar do tudo por fazer, ermo. No mais de ano é que apareceram os vizinhos, seu Zequinha, dona Dalcina e a filharada. Foi meu primeiro medo: apareceram de repente, o rancho já estava erguido, já havia banco para sentar, o limpo para a primeira roça, a vaca leiteira e algumas criações; alegria do pai com seu Zequinha, oferecendo ajuda no que carecesse.
As primeiras colheitas, meu primeiro vestido de chita, meu segundo medo. Eu e Quinzinho, meu irmão, levando almoço para os baianos na roça; medo de cobra na palha de arroz onde brincávamos, esperando as vasilhas. Medo do cobreiro curado por Zé da Casca, benzedor agregado de seu Zequinha.
Meu terceiro medo, o pai contando histórias do invisível; noite escura, ele no meio dos baianos em volta da fogueira, na porta da casa. Ao seu lado, em pé, bem junto dele, não demonstrava não. Nesse dia, enquanto ele contava uma história do Ronca-Quente, aquele silêncio de mais medo que atenção, no descrever os passos do tinhoso, de dentro da casa ouvimos o barulho de passos na tábua larga do assoalho. Foi aquela correria. Nesse dia os baianos dormiram na sala, em cima da pilha de arroz já colhida. Eu e meus irmãos, juntos com o pai e a mãe, tão assustados quanto nós.
O quarto medo não tive, acostumei com as histórias dele para os baianos.
Num dia, contava que o ouro que roubaram em Arrependidos acabou nas mãos de um seu compadre que, escondido no mato, na hora em que o coletor e um companheiro amoitavam os alforjes. Ouviu.

- Abre um buraco bem aqui, perto dessas pedras.

O companheiro furou o buraco. O coletor perguntou.

- Como é seu nome todo companheiro?

- Custódio dos Anjos.

O coletor enquanto dava os dois tiros, rindo.

- Fica guardando o ouro e só entregue prá quem disser seu nome todo.

E enterrou o morto junto com o ouro.
O pai ria demais e dizia, para agradar, que o compadre dele era baiano.
Depois que o coletor sumiu das vistas, seu compadre baiano saiu do mato e chegou perto da cova.

- Seu Custódio dos Anjos, vim buscar o ouro.

Todos riram.

Foi nesse dia que notei o olhar, meu primeiro desgoverno, o corpo esquentou, o coração disparou e olhei também. A alegria estava ali, daquelas, também minha primeira.
Julho do ano nos casamos. No mutirão fizemos nossa casa de adobe perto da casa da mãe. Tinha dezesseis anos.
Meu segundo desgoverno, o corpo esquentou, o coração disparou, contei para a mãe primeiro, depois para Terêncio que me erguia para o alto. O pai jogava o chapéu e dava tiros, como naquela vez, quando chegamos e ele confundiu o barulho do veado perto da cerca e atirou; pensou ter matado uma onça e furou todo o chapéu, na alegria.
Meu terceiro desgoverno, o corpo esquentou, o coração disparou, minha primeira filha, Aurora. Ela, diferente dos meninos, nasceu junto com o dia. Alegria de Terêncio ao dar o nome Aurora.
Nesse tempo, mudamos dos Três Quartos da Limeira, minha primeira tristeza.




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Não confunda não, sou manso e reparo no seu olho comprido, minha alma está longe de sua lisura. O comando aqui é outro, põe tento que de um nada temo. Arvoro minhas intenções, não adianta rodear com essa ilusão, caio não, sei do que quero no tintim, careço de trato não, nem de latumia, vim como vem todo mundo, escolhi e não arrenego, sou firme até quando careço.
Sai para lá ardiloso, atenta outro, daqui de nada adianta essa conversa, caio não. Foge daqui, faz proposta longe, aqui tem quem te olha nos olhos, te deprecia, te espanta a presteza, me chama firmeza, seu coisa.
Não adianta semear nos outros, turva quem quiser, não reconheço, lido com todos sem te reconhecer dentro, lido com o lado igual o meu, só no simples como estou lidando agora. Se te convenço, olho no olho, destemor tenho de te ver igual, a escolha é de quem escolhe... então não adianta andar comigo tanto, faço gosto já ter escolhido.
Não adiantou esbravejar nesses anos todos, estamos aqui na mesma conversa, oferece prazer; prazer já tenho, oferece glória e riqueza, preciso não, seu coisa; colho glória na casa que entro e riqueza não esmiúço vantagem. De certo, glória e prazer teria se me convencesse, seu desafio maior aqui no Entre Rios. Sou miúdo mas me queres junto, não é? Mas sou firme e isso é gloria minha. Persevero e isso é prazer meu. E a riqueza, toda ela, carrego é dentro, já sigo, te antecedi.
Adianta caminhar junto não, esperar junto não. Quer deslize no jeito, no pensamento, vai ter nunca, olho e penso tudo simples e contrário.
Achou que nascer dentro de mim era vantagem, enganou seu coisa, te crio separado faz tempo, predomino comum, te aprendi todo e não quero te convencer de nada. Vê como faço, renego nada do mundo mas a miséria só para lidar, aparto.
Agora vai para seu canto procurar outros artifícios, seu coisa, que é hora do meu terço.




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Rol das almas


O dia delatava muita chuva, o céu foi escurecendo num passar de triz, o vento soprando dobrado. Nela cair, enchia o Vai Vem desde a cabeceira. No solavanco da água, descendo o leito, caiu a escora e o pau mais perto que sustentava, no apoio, o encabeçamento do pontilhão. Resvalo dele cair, atingiu seu Dedé que demorou a atender o grito dos companheiros para correr dali. A cheia engoliu seu Dedé e os quatro esteios de aroeira assentados e foi solapando a beira, engolindo os barrancos. Água-lama, turvada do que lambia no jungir, barro só, pejando a várzea.

Seu Dedé foi...


O vento era tanto que avivava o borralho sem precisar soprar. Lucimar punha a lenha e gritava para Mariinha chamar dona Esmeralda. A chuva lavava o mundo, no entender da beata, bom agouro quem nascia num dia assim, fosse noite, não. Era sinal contrário. A criança estava por não esperar e não esperou.

Tavinho veio...


Ninguém se conformava, vê-la ali, deitada, quase sem força nenhuma. O rosário nas mãos e nos lábios a reza diária, rezava na febre. Rezava pedindo a vida, rezava pedindo um homem para a vida, podia ser Zitinho, podia ser Jeromo, podia ser... Faz chá, limpa eu, sussurrava. A febre tomava conta, vinda sabe lá de onde, pegar Nica com o terço na mão, rezando. Rezava pensando em Zitinho, o corpo foi esquentando, achou que era outra febre, era não. Era só no corpo, desmaiou. Desmaiava toda hora. Meu terço, traz meu terço, acordando pedia. Faz chá, chama tia Filó.

Nica foi ...


Preparado estava tudo ali, bacia, balde d’água, os panos, cordão, tesoura, folha de fumo, o paninho feito rolete para ela morder e até uma garrafa, se precisasse soprar.
A parteira já dormia a segunda noite no quarto ao lado. Um pouco ansioso, Necão dormia junto da mulher, metade dele dormia e a outra era a atenção figurada no modo espaçoso de ele lidar com aquela hora. Na madrugada, tudo calmo, o sono tomou conta e Necão dormiu as duas partes, só acordou no dia raiar, com a cama toda molhada e a filha, primeira, nascida com o silêncio da aurora, nos braços da mulher.

Davina veio...


- O palhaço o que é? É ladrão de mulher...

Ia passando pela rua o primeiro circo no lugar. Aquela gente meia cigana anunciando, sem vergonha nenhuma, a função da noite, que muitos nem sabiam o que era. Na porta de casa, Zilá ficou sem graça quando o artista fez uma mesura, cantando malicioso fez uma segunda mesura, como que convidasse.

- O palhaço o que é? É ladrão de mulher...

Zilá sentiu um estranho, o bico dos seios intumescer, um calor no corpo, que a lembrava donzela, percorrer. Quis mais, quis de verdade, quis tanto que começou a encontrá-lo quando ia lavar roupa na Pedrinha, a sonhar com ele quando fazia o almoço, a rondar o circo, até com o marido junto.
Num dia, o largo vazio, nem notícias dele, tinha ido embora. A tristeza tomou conta dela, acompanhou até o copo de formicida.

Zilá foi...


- Chama alguém, compadre, tem alguma coisa errada, a comadre tá sofreno muito.

A vizinha não sabia o que fazer. Recurso não havia ali, a Vila ficava a mais de três horas de trote, ainda tinha que buscar o cavalo no pasto. Damião, desesperado, chegou perto do catre e pediu para a vizinha sair. E ali, só com a mulher e a coragem, respirou fundo e puxou a criança do ventre da mãe como fizera com o bezerro da vaca Castanha, na semana anterior. Quando a vizinha ouviu o choro e correu para ver, Damião estava cortando o umbigo do filho que a mãe já tinha no peito.

Jujim veio...


Restinho de pirraça levava, tardando nele, fazendo tudo ao contrário do mandado pela irmã.

- Leva as costuras correndo que dona Clotilde tem pressa.

Ele demorou, passou na Pedrinha, tomou banho com a meninada, juntou com a encomenda as roupas e voltou nu, até passar pelo quintal do seu Valdivino, pirraçando ele. Quando se vestia atrás da moita de bambu, sentiu a picada na perna esquerda, aquele ferroado marimbondo, coisa de nada. Em casa, começou a repuxar a perna esquerda, o lugar da picada inchava num vermelhão estancado. Teceu chamou a irmã, já era madrugada, fizeram de um tudo. O menino amanheceu só um pouquinho.

Teceu foi...




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Zé da Cabaça


No embornal, levava a paçoca feita por Didinha na véspera; na mala de saco, traspassada na sela, duas mudas de roupa e, no coração, vontade de chegar logo e ver como era ela. Meu olhar ficava perdido nas patas da mula da frente, como se cada passo deixasse para trás um pedaço.
Distraía tanto no pensar que nem ouvi o urro da onça no Capão de Dentro, terras de Cristino da Barreira. Mas a mulada ouviu e se assustou fazendo trote, desorganizando a comitiva. Bem que o pai tinha avisado para esperar o cometa do Baldino; acompanhar a boiada era mais difícil.
Apesar de as mulas com o rancho estarem na frente da boiada, quando elas se assustaram, o gado ficou nervoso e se dispersou pelo mato afora com o descontrole dos vaqueiros de Tertuliano. Juntar a boiada de novo foi trabalho de um dia; mais de dez novilhos desembestaram para o lado do mato contrário ao urro da onça, na juquira pura, terminando no Ribeirão da Concórdia. E foi lá, no contrário do urro, que achamos, na outra margem, a toca da onça.
Foi só contar, que Zé da Cabaça já começou a se arrumar para a espera, apesar da reclamação de todos, fosse pelo carecer do serviço, fosse pelo perigo. Avaliando o urro, era bicho grande, pelo tamanho da toca, então, assustava mais ainda. Mas Zé da Cabaça não labutava com medo, não. Afamado, tanto na mira como pela paciência; caçador de paca sem igual. Capaz de ficar noite inteira em cima do jirau, à espera. O apelido era por causa da cabaça onde urinava nessas horas, para não deixar cheiro e a caça espantar. Matar uma onça era um ato de respeito que, até hoje, ele não havia feito, e agora não ia desperdiçar uma chance daquelas.
Acompanhou a boiada até meia légua do lugar, esperou organizar o pouso e a noitinha chegar e saiu rumo da toca da onça.
A merenda já estava cheirando quando apareceu Zé da Cabaça, cabeça baixa.

- Ela num apariceu, disse. E se ensimesmou no resto da viagem.

Chegamos ao curtume já no meio duma manhã de domingo; despedi dos companheiros e na casa do padrinho Delmiro banhei, indo, com ele direto para a casa dela.
Conheci primeiro o pai e a mãe. O café. Ela que fez, disse dona Laura. Depois de muito prosear, falando dos teres e haveres, foi que a chamaram. Era muito formosa, mais que podia ser no meu pensamento.
Pouco mais de mês fiquei no Vai Vem, em compromisso do noivado; marcamos data e tive estrada, levando, dentro, o cheiro dela.
Fui, com o padrinho, até a Forquilha no compromisso dele e, de lá, na passada do Baldino, segui com ele.
O pai tinha razão, com o cometa a viagem demorava menos, apesar do descarrego e carrego das mulas em cada dormida, dos pousos demorados por conta dos negócios de Baldino.
Na passagem pelo Capão de Dentro, avistamos ao longe um homem entrando nos matos; quando chegamos perto, era Zé da Cabaça lidando com o almoço. Seis codornas, já assando, pareciam nos esperar.

- Suzinho no mundo, seu Zé da Cabaça. Falou Baldino.

- Tô na labuta cum onça, seu Baldino.

E contou que já fazia mês que estava à espera da onça; passava a noite em cima do jirau e nada da bicha. De dia, distanciava para o cheiro não acusar. Não a viu nesse tempo todo, mas as marcas do rastro estavam por todo lado. Já tinha estudado o terreno por onde ela chegava; tinha entrado na toca muitas vezes para ficar com o cheiro dela. Não tomava banho, só passava as folhas do mato no corpo para não recender cheiro de gente. E nada da onça. Mas que ela estava por perto, ele tinha certeza.
Seu Baldino ria muito e falava para o Zé da Cabaça:

- Onça é bicho tinhoso. Ela já sabe que ocê tá tocaiano ela, ela óia mais procê do que ocê prá ela. Ela sabe mais docê que ocê dela. É no dia que ela tá drumino, inganano o amigo.

- Deveras seu Baldino?

Seguimos viagem, deixando ele resolvido tapear a onça; pondo sentido no de dia e no de noite.
Didinha fez paçoca, almôndega, farofa, piou na vara muitas galinhas e mais um-sem tanto de matula. E dessa vez toda a família, mais dois vaqueiros, num todo de vinte bocas para comer as gostosuras de Didinha, caminho afora. E meu coração querendo chegar logo, saudades dela, cheiro dela cheirando em mim.
Chegando ao Capão de Dentro, quando eu contava ao pai a história do Zé da Cabaça com a onça, o cheiro de perdiz assada, denunciou: era ele.

- Seu minino, como vai? Inda num topei cum ela.

Quase ano ficou Zé da Cabaça ali, à espera da onça. Até roça ele fez, distância de quarta de légua da toca, com a permissão de Cristino da Barreira.

- Seu Baldino tava certo, ela vai no igual que i’eu. Já tive de testa cum ela muitas veiz; quando faço a mira, ela some. Tamém ela quase me cumeu, mas o gaio quebrô e dotra veiz i’eu pulei no corgo e nadei nus debaxo.

O tempo passou. Meu mais novo já ia fazer sete anos, quando passei no Capão de Dentro de novo, conduzindo uma boiada, já com minha própria comitiva. Quando lembrei do Zé da Cabaça, toquei o berrante como marcando o lembrar. Senti o cheiro do assado no ar. Era ele mesmo, Zé da Cabaça, ali, no mesmo lugar, com duas codornas e uma perdiz já no ponto de comer.

- Seu minino, cumo vai?

- Vou bem seu Zé. E a onça, já matou?

- Inda não, meu fio. Mais já tá marcada de chumbo. I’eu das unha dela.

Abriu a camisa mostrando a cicatriz das garras da onça.

- I’eu num mato ela e ela num mata i’eu; custumamo e vamo seguino a lida.




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Desde que nasceste


Em volta do curtume escolhi ficar, se era minha mesmo, achava que deveria acompanhar desde pequena; fazer como os outros, ficar por aí, atazanando a vida de todo mundo e só aparecer na hora chegada, não queria. Minha preferência era acompanhar aquela alma, iniciando sua formação desde o engatinhar.
Sempre fora assim, mesmo com toda a crítica que recebia, fincava opinião e por isso, às vezes, era até discriminado, mas não ligava.
Gostava demais do enquanto, de vê-la dar os primeiros passos pelo em volta, seu andar miúdo pelo pasto, quando banhava no Sapé, tinha força. Ficava de longe olhando, medo do cheiro delatar. Perto mesmo só chegava no em volta do curtume, os cheiros se misturavam e não assustava.
Gostava enquanto, já mocinha com porte de nobreza, distinta ia se moldando, alma firme e cheia de ternura, raridade que percebi logo, ainda ela menina. Sonhava tanto, era gananciosa e nessas horas séria demais, exigente demais.
Gostava mais do enquanto, de vê-la dançar o primeiro baile, o corpo formando, seguro nos gestos de alma dançando.
Nessa época, um dia não resisti e esperei numa esquina e quando ela passou, sussurrei.

- És minha...

Ela correu pela noite e não tive coragem. Gostava tanto de vê-la com medo e naquela angústia revelando incertezas. Vê-la conhecer o amor em silêncio. Crescer ali nos arredores do curtume, eu podia estar bem próximo, acompanhando, anotando, descobrindo, esperando, era minha.
Poderia tomá-la a qualquer hora, na vontade. Mas não o fazia, esperava com franqueza, com ciúmes, gostava.
Um dia, ela se mudou para outra rua, longe do curtume. Eu não podia ficar tão próximo, o cheiro ia delatar. Me conformei com outros artifícios que me foram dados ter e a vi crescer justa, às vezes rude e juntando mágoas; às vezes agressiva e silenciosa, ambicionando.
Não via a hora, ao mesmo tempo, querendo não querer, preferindo... Mais uma vez não resisti e a esperei numa tarde findando.

- És minha...

Ela correu quase indiferente, expressão presente naquela hora, paz e razão na idade conquistada, deixando herança.
Mais uma vez não tive coragem e voltei a minha forma de antes, exalando o pior dos cheiros, com todos os meus segredos esperei na cumeeira do telhado mais alto do curtume a noite calar e sorrateiramente pulei a janela do seu quarto. Ela sonhava com o amor quando a acordei com meu calor cheirando a enxofre.

- És minha...

Ela veio devagarinho, sorrindo, silenciosa sem nenhum gesto de espanto e se entregou calmamente me perguntando.

- Desde quando me amas?

Fui abraçando aquela alma, que me fora predestinada, e respondendo como se a pergunta não tivesse sido feita para o amor com que ela sonhava.

- Desde que nasceste, alma que me ama.




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Rancho do Lajeado


A água do Sapé vestia a pedra que fazia, igual à ponte, a ligação dos dois barrancos. Uma casca fina d’água brilhava no sol da manhã; era o Vau do Lajeado, passagem obrigatória de toda tropa que cruzava a Meia-Légua, lugar também de arrancho dos viajantes e de toda boiada que ia rumo ao curtume. Até rancho feito por não se sabe quem tinha sido erguido, no uso dos passantes.
Foi ali, naquele rancho, na beira do caminho, que a conheci, ainda menina, agarrada ao pai. Aonde ele ia, ela estava atrás. Magra, olhos grandes, olhando a gente meio no espanto, meio no curioso. Onde já se viu levar uma criança daquela idade numa comitiva pelo sertão afora. Ainda mais nas águas, com as estradas que era lama só. Sem demonstrar especula, à noitinha, garrei a puxar prosa com o ponteiro da boiada e soube que o vaqueiro tinha perdido a mulher fazia pouco, e não tinha onde deixar a menina. Em ia levando ela junto para deixar com a madrinha no Vai Vem.
Os caminhos foram cada um para o seu governo, eu lá ia, eles voltavam, no rumo do curtume.
Varou ano, varou dois, nunca mais vi nem o vaqueiro nem a menina, mas, toda vez que parava no rancho do Lajeado, me vinha no lembrar aquele olhar e a figura dela acompanhando o pai até no tomar água de cócoras, na lâmina d’água da pedra do Lajeado.
E foram varando anos, criei situação no negócio com fumo e, um dia, entregando a mercadoria na venda do Manco, dei de cara com a menina, agora uma moça feita e das mais formosas. Foi de relance o olhar, mas no tempo de enxergar a boniteza e pôr quentura no corpo.
O Manco pois reparo e, com aquele seu jeito de conversar demais, já foi logo contando que era enrabichada com o Custódio. Quando ele ficou viúvo, no mesmo dia, a afilhada já estava na cama dele.
A pitada de tristeza bateu dentro, não dei mais prosa. Recebi os cobres e ganhei estrada. No Lajeado fiz pouso e comecei a pensar nela, nem o nome sabia. Juntava no pensamento o olhar da menina com o corpo da moça e ia formando bem-querença.
Era parar no rancho do Lajeado que me lembrava dela. E pensava em Custódio, logo com a afilhada, ainda nova daquele jeito. Um dia, de pouso, quando estava nesse pensamento, escutei o barulho da tropa de Baldino, junto com o barulho das mulas no vau, senti a catinga de couro molhado, única carga que ele levava.

- Boa noite, seu Baldino.

- Noite, o céu vai derretê seu Zaqueu.

Ajudei o descarrego e a escovação das mulas enquanto proseava com o velho Baldino; proseio de um tudo, até que não agüentei e perguntei se ele sabia do pai da menina, afilhada de Custódio.

- Sei quem é a minina e conheci o pai dela. Ele morreu perto do Cobertão, começô a tussi e escarrá sangue, apartô da comitiva na casa do Tó e lá ficô até o derradero. I’eu que levei ela e a nutiça p’ro padrinho. Nunca mais vi.

Amanheceu o dia encoberto na ameaça de chuva forte daquelas de lamber a beirada dos córregos. Nem eu nem seu Baldino arriscamos seguir viagem, ficamos de conversa, esquentando fogo.

- E como anda o negoceio cum fumo, seu Zaqueu?

- Dá para o sustento, mais a trabalheira é muita. Tirando o povo do Cobertão, que sabe fazer uma cura bem feita, o resto descuida na cocha e, quando negoceio, pelo menos uma vira tenho que fazer.

- Me lembrei do seu pai, ele falava mesma coisa. Foi pur isso que larguei a labuta cum fumo.

- Seu Baldino, como é que o senhor agüenta a catinga do couro estrada a fora, mês a fora?

- O custume agüenta, seu Zaqueu.

A chuva começou, fina e intermitente, quando ouvimos gente chegar. Era Custódio e a afilhada. A moça, antes de apear, jogou aquele olhar bem no dentro do meu. Apearam. Ela acomodou em volta do fogo, estava de barriga, só vimos quando vestiu a capa seca que seu Baldino cedeu.
Custódio asseverando autoridade com o olhar, pondo reparo nos cuidados que tínhamos, gastou pouco falar.
Ela começou a tossir, seu Baldino saiu debaixo de chuva mesmo e voltou com umas raízes; fez uma infusão misturando com salamargo e dava de beber, hora em hora. No redor, foi escurecendo, a chuva engrossando. Foi assim o dia todo mais a noite, riscada no céu de raio e trovão. Parecia que estavam desarrumando o mundo.
Eu mais seu Baldino passamos o tempo todo no lado da moça, ardendo de febre, tossindo comprido, e pelos cálculos já perto de parir. Do lado, o Custódio roncando que parecia um porco, dava vontade de sangrar ele.
Já no meio da manhã, a chuva foi raleando e o Lajeado foi enchendo mais ainda, não dava para passar de jeito nenhum. Custódio perguntou.

- E agora, seu Baldino, como nóis vamo passá?

- Agora é isperá o Braço enguli essa cheia. Em dois dia, se pará de chuvê.

A moça ardia em febre, a infusão não adiantava. O Custódio nada valia, nem perto dela chegava, só ficava vendo a água do Sapé subir, eu olhava para ele entojado.
Não mexia uma palha, só reclamava da catinga do couro amontoado, ocupando metade do rancho. Seu Baldino tinha razão, com o tempo catinga vira cheiro.
A moça sem força para nada, se sujava toda; assear era custoso; Custódio, na primeira vez, ainda fez sozinho, mas depois era eu e seu Baldino a bulir nas partes dela para limpar; no meio daquela lama toda, rancho com cheiro de couro, sem lenha seca; o pouco querosene que tinha, já quase no fim. Ainda Custódio pondo reparo. Era custoso.
No quinto dia, o sol apareceu e a febre não desapareceu. Com uma semana, o vau deu passagem.

- O que o senhor vai fazê? Perguntou seu Baldino a Custódio.

- Vamos segui viage de vorta.

- A moça num agüenta, entrei no meio da conversa.

Custódio demonstrou não gostar da minha emenda. E nessa hora a criança achou de nascer aparada por seu Baldino. Não tinha ali nenhum pano, nenhum graveto para acender um fogo; a criança chorando, a moça fraca demais foi minguando até morrer nos meus braços. Do lado, Custódio teve reação pouca, nem perto dela chegou e nem pegar a filha nascida quis. Não agüentei nessa hora.

- Seu filho da égua! Já encostando a faca na goela dele, perdendo o respeito de tudo. Seu Baldino que nem sabia da amigação exigiu.

- Ponha tento, seu Zaqueu.

Acalmei e; ali na frente da moça morta, com a criança chorando, o cheiro de couro, a chuva voltando a cair forte, o safado do Custódio com a pose perdida, contei tudo a seu Baldino.

- E agora, seu Custódio, o que o senhor vai fazê com a criança?

- Num oriento as idéia, seu Baldino.

Outra vez entrei na conversa.

- Eu fico com ela para criar. Seu filho duma égua.

Seu Baldino não falou nada. Custódio também não. E no calar consentiu. Arreou o cavalo e voltou ao Vai Vem.
Ficamos com o corpo para enterrar. Isso feito, eu mais seu Baldino ganhamos estrada, passando no vau com a água pelo joelho. Dele ficou a promessa de batizar a menina que levei.
E lá se vão dezessete anos. Os olhos e o corpo são da mãe, mas a menina é filha legítima, parida do amor de dois olhares.




°°°




Duas sombras

O que aconteceu? Não posso mexer, não enxergo nada mas distingo tudo. Tudo passa ao redor, desencontrado, passa enviesado, sem ordem, coisas da meninice invadindo meu olhar que vê sem os olhos, que vê para trás. A maldade feita com a mulher que pedia esmola, ninguém viu mas agora eu via. Parecia mais velho olhando, mas era eu menino, fazendo e ao mesmo tempo de longe olhando.
Tentei passar as mãos nos olhos mas as mãos não mexiam, o corpo não mexia, não tinha cheiro ao redor mas eu sentia o cheiro do sangue do escrivão esfaqueado, perto do cruzeiro, que eu socorri. Ele chorava de dor e o sangue cheirava quente e entrava pelo meu nariz. Enxergava o cheiro entrando, sentia entrar, via, de um canto, tudo isso acontecer, sentindo eu mesmo sentir.
Tudo dando volta, a cigana se limpando para mim, ali bem na minha frente, os seios pulando fora do corpete e o barulho da água na bacia de asseio me chamando, eu querendo ela, eu me vendo querer, olhando o marido querer depois de mim.
Calunga sangrando no peito, o esguicho matando ele devagar, ali na minha frente, briga de jogo, eu querendo que ele morresse para ficar com tudo do nosso à-meia, apiedei, socorri depressa, ficou só em mim a maldade, mas dali eu via e sentia o peso daquele guardado.
O que está acontecendo? O tempo passado está repetindo?. Me acode, me vira, mexe comigo.
Padre, fui eu não, fui ruim não. Via tudo, sentia tudo na minha frente. O padre apontando com o excomungo antes do veneno fazer efeito. Foi ela, meu Deus, foi ela que mandou eu comprar o veneno e quis deitar comigo. Tudo aparecia na minha frente como se tivesse acontecendo naquela hora. Era tão novo, nem barba tinha, mas o fogo dela já bulia comigo e no em volta, também, pergunta Sileno, Barbuim ou para o sem vergonha do Damão. Via tudo, fui eu não, até o Alarico falou mal, como se ele não quisesse daquele fogo, a quentura. Não adiantou fugir, mudar de serviço, de idéia. Não adiantou freqüentar a igreja, congregar aos marianos. Adiantou, Deus? Eu via onde ela foi espalhar o fogo depois da viuvez, foi na delegacia, no juiz, na sacristia. Vejo com meus olhos cegos, seu padre. Estava sentado na cômoda vendo a labareda, vendo o diabo ajudá-la a levantar sua batina pegando fogo, vendo sem ver os arranjos para me condenar.
Na cela eu sonhava, sonhava em escapar, sair no mundo, para o norte. Sonhava virar cigano.
Quietura esta, não consigo me mexer, enxergar e não escuto nada, só as lembranças vindo. Eu ajudando Quitéria, aleijada com vida só pela boca, ensinando seu filho Zezinho, por via de oficio, a viver. Eu passando a perna no seu Baldino com duas mulas velhas, dando peso de pedra na saca de feijão e seu Baldino consentindo, calado na bondade dele.
Por tudo isso, lembranças do bem e do mal, desconfiei que tinha morrido. Enquanto me velavam, eu ia aparecendo no tempo pelo qual passei e ia formando confusão. Nessa hora entendi os dois vultos que apareceram ao meu lado, ali, naquela imobilidade de morto mas vagando, vagando para trás... os dois puxando, ora um; ora outro, para cada lado do tempo.
Nesse momento, pude perceber a mão de um no que fizera de bom na vida e a mão do outro nas minhas mazelas, chegara a hora. Era o anjo e o demônio me tomando, com firmeza, pelas mãos para seguir meu próprio enterro.




°°°




Cobre de sino

Toda dor foi possível suportar, o não-ter e sentir latejar fundo. Também, os olhares perguntando sem perguntar. Exceto o de Alegria, esse doía. Sua presença incomodava. Havia uma tristeza no ar quando ela entrava no quarto, com aquele sorriso que para mim mais parecia soluço, coisa de amor definhando.
Lembrava do dia em que a conheci, recordava do cheiro da manhã, do domingo, da missa celebrada de fora da igreja em construção. Lembrança dela passando de vestido de organdi, estampado em azul, sapato branco e com o véu já na cabeça. A mãe puxando pelo braço por causa daquele olharzinho que ela me deu. Lembrança do rosto corando e o olhar abaixando.Blém, blém, blém ...
Blém, blém, blém ...


Aquele sino era o que mais me doía, me enlouqueciam as badaladas, dilacerando por dentro. Como se tivessem cortando meu avesso, dor insuportável e maior ainda com Alegria ali me olhando, disfarçando a tristeza de dentro com sorrisos e afagos nas mãos. Fechava os olhos, fingia dormir. Lembrava de quando a conheci.
Alegria mais Idalina, festa de Nossa Senhora da Abadia, cheiro de pólvora dos foguetes, novena mais demorada, mastro erguido, leilões e meu olhar acompanhando Alegria pedir para o menino Tobias entregar o correio elegante.

- Me encontre atrás da igreja.

Nem acreditei, emoção correndo no corpo, primeira vez assim. No encontro, Idalina reparando a esquina. Nossos primeiros silêncios, as primeiras palavras. E ali mesmo, tempos depois, minhas mãos entre as suas, também o primeiro beijo, e o compromisso definitivo.
Perdia a noção do tempo, já era madrugada, ela já havia ido embora. E eram as mesmas sensações, a mesma dor. Dor e a ansiedade nos minutos contados até o sino bater de novo.Blém, blém, blém ...
Blém, blém, blém ...


Era como se tivesse uma chaga dentro do corpo que latejava com o toque. Quando ele parava ia me acalmando e o pensamento voava longe.

- O Pedro já é quase um homem, ele dá conta de buscar o sino, seu vigário.

Era manhã de finados, lembro do cheiro da paçoca levada na matula, de contar os passos para me distrair no caminho; de Baldino, que me cedeu uma cabaça d’água no meu desprovimento e me ajudou a arrumar o cabeção do carro que soltou numa bacada perto do Inajá. A trabalheira da volta com o sino pesado, forçando a canga de bois, aluindo de lugar em qualquer diferença do caminho.
Lembrança da chegada, minha boca secando no medo de lembrar. E a noção do tempo perdida na dor, o quarto escuro, as badaladas, é agora.
Não era, doía pensar que era. Agora era.Blém, blém, blém ...
Blém, blém, blém ...


Alegria vinha, não queria. Não queria mais vê-la, não queria mais que aquele sino tocasse, não queria ver ninguém.
Conformação no tempo não achei, repassei todas as lembranças naqueles meses. Não achei sossego em nenhuma. Não ver mais Alegria não aliviou meu sofrimento. O sino continuava tocando todos os dias e era nessa hora que a dor nas pernas rodopiava dentro de mim.Blém, blém, blém ...
Blém, blém, blém ...


Esperei todos dormirem e fui rastejando até a igreja levando o facão. Foi como tirei a tramela da porta. A escada ficava na boca do alçapão e dava no forro; de lá uma escada menor ia até o campanário. Subi os degraus um a um, sentando-me, de vez em quando, para tomar fôlego, até chegar ao sino. Dor nenhuma sentia nesse esforço. Recolhi a corda, receio de tocar numa distração minha, e fiquei frente a frente com ele.
Era preso no cavalete, bem feito por Joaquim Pirracento, sustentado na parede que apoiava a cumeeira. Fiz dois piques com facão, um em cada lado do cavalete: uma facãozada, um intervalo grande, cadenciado para não acordar o padre.
Enquanto rastejava pela rua na volta, lembrava-me do dia em que cheguei. A festa que foi. Lembrei-me das tentativas de subir o sino para a torre da igreja, de Alegria me falando: Agora podemos marcar o casamento; da teimosia do padre em não esperar Joaquim Pirracento para subir o sino; do cavalete mal feito, que eu mesmo ajudei a fazer, do sino despencando em cima de mim.Blém, blém, blém ...
Blém, blém, blém ...


Ouvi por sete dias. No oitavo, de madrugada, ele despencou. Fazendo um enorme barulho, caiu na quarta badalada e derrubou todo o telhado da igreja.
No meu canto não sinto mais nenhuma dor, nem tenho a Alegria. Fiquei apenas com o silêncio e a sensação de ainda ter as duas pernas.




°°°




Toque de passagem


Começou no Largo do Rosário, no meio da tarde, o sol marcava em riste. Na rua lateral, descendo no passo, vinham dois cavaleiros em proseio, delatando o sossego daquela hora, nem poeira os cascos dos cavalos arrancavam do chão. O ar parado, naquele mormaço quente, espantava até os cachorros para a sombra e beirais das poucas casas que iam nascendo ali.
O primeiro respingo caiu nas mãos de um dos cavaleiros que enrolava o cigarro de palha, bem na hora que ele calcava o fumo com a lâmina do canivete. Com o respingo, veio como de muito longe, o tropel parecendo boi bravo fugindo da boiada. E aí começou a chover de verdade, o barulho foi aumentando e o fedor foi consumindo o normal do cheiro do lugar. O povo começou a sair na rua sem saber o que era aquela chuva grossa, os cavalos se inquietaram e começaram a pular derrubando um dos cavaleiros, enquanto o outro mais sabido desmontou logo. O chão tremia, chegou a derrubar a parede de adobe da segunda casa da rua. As mulheres começaram a rezar e gritar:

- Acode, Antenor!

- É o fim do mundo, meu Deus!

- Calixto, tira a Duvinha da casa!

O arraial todo virou um pandemônio, era gente correndo pela rua gritando, era cachorro uivando, cavalo correndo sem o cavaleiro, as portas das casas batendo e as telhas pulando fora dos telhados. Ninguém atinava o que estava acontecendo, parecia o fim do mundo.
Com prazo de minutos, formou no começo da rua principal aquela ventania que veio subindo como um redemoinho, cegando os olhos de todos, aquele barulhão de mil bois passando desembestados e aquela catinga, num céu anuviado, marrom.
De repente passou, ficou aquele silêncio pesado e aquele cheiro, que ninguém conhecia, carregando o ar. Logo, todos começaram a se juntar na porta da igreja em orações.
O monsenhor era o mais abalado de todos devido à sujeira que escorria pela torre da igreja, recém pintada.
Passado o susto, a conversa era só sobre o acontecido, cada um fazia sua conjectura.

- Vamos examinar, parece merda, dizia o sapateiro Damim.

- É bosta de porco, completava o intendente que era dono do maior chiqueiro do Arraial, portanto, conhecia o excremento.

- Será que o vento levantou seus capados do chiqueiro, doutor Benedito? Perguntou o monsenhor.

Aquela gente toda na porta da igreja seguiu o monsenhor e o intendente até a casa deste para ver quantos porcos faltavam no chiqueiro e qual o tamanho do estrago que aquele pé de vento tinha feito.
Lá chegando, encontraram tudo no lugar, não faltava nenhum animal mas os capados se assustaram com aquela quantidade de gente.
No lusco-fusco da tarde, todos reunidos agora na porta da casa do intendente, sem entender o acontecido, um menino aponta para o começo da rua e diz:

- Olha! Outra pueira vem vino.

Todos firmaram as vistas naquela direção e viram, assustados, o poeirão. Era Tiburço mais o menino Quelé tocando a boiada. Tiburço chegou rindo.

- Da comitiva prá me esperá, gostei! Mas do cheiro não! Boa tarde, seu padre. Boa tarde, doutor Benedito. Tarde prá todos.

- Padre não, seu Tiburço, monsenhor viu! Monsenhor! Repreendeu o religioso.

- O senhor tem alguma coisa a ver com o que sucedeu aqui, perguntou o intendente.

- Não, doutor Benedito, dele passá aqui não, mas o nó no rabo fui eu quem dei, pur isso a brabeza dele.

E foi saindo, ajeitando o berrante para o toque de passagem, deixando a poeira no assombro de todos.




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Colcha de retalhos


Não tinha a lembrança de ver antes. Aquela foi a primeira vez, dali do portão de casa, vi ele passar num cavalo baio.

Nenhuma lembrança tenho, nesse antes, no portão.

Por que não passa todo dia, como é mando dos meus olhos?

Lembro de outros olhares, outros portões, esse não.

Faz tempo ele não passa, mas o povo dele eu vejo.

Será que era uma branquinha bem novinha?

Se não passar hoje, vou perguntar na venda.

Lembrei, era magrinha, não era?

Passou, está mais bonito. Mas nem me olha.

Queria ter reparado mais nela.

Por que tenho que vê-lo com outra na festa?

E ela me queria?

Tantos anos e nunca mais passou.

Se eu soubesse!

Nossa! É ele. Depois de tanto tempo, meus olhos quase esqueceram.

Ia esperar crescer.

Ainda é bonito, mais bonito ainda.

Casava com ela.

Mas é só para os meus olhos, casou!

Como é bonita!

É viúvo? Mas tão novo. Eu o via passar, era menina ainda.

Presta atenção em mim!

Ele trabalha na venda.
- Falta alguma coisa, mãe?

É ela.

Está mais bonito que nunca. Me olhou, será que me quer?

Como é linda. Será que me quer?

- Dois metros de chita.
Que tesoura mais boa!

- Da estampada?
Ela gostou da tesoura.

Ele passando no meu portão de novo, meu Deus.

Será que me espera? Nem acredito.

É ele. Me viu.

- Tarde.

- Tarde.

- É pesado, ajudo a levar.

- Leva à tardinha.

Ela me quer.

Ele me quer.

- Tarde.

- Entra, põe em cima da mesa.

- Para você.

Meu tesouro, a tesoura cortando as sobras de pano para nossa colcha de retalhos, enquanto ele faz nosso mais novo dormir.


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Padre Inocêncio

Foi numa noite fria e úmida, num agosto entrando, as batidas na janela me acordaram, daquele sono de começo de noite. Era o Anésio afobado e tropeçando nas palavras.

- Corre, home de Deus, o padre ficou doido, dona Lica mandou chamá na urgência. Corre, que vai acontecer uma disgrama.

Mal tive tempo de vestir a roupa, chegou o Onório, com a mesma urgência, se benzendo todo.

- O padre ficou doido, não deixa ninguém entrar na igreja. Dona Lica já chamou todo mundo. Ele acabou de rezar a missa e endoideceu, começou atirando as velas acesas no povo que rezava a novena da padroeira, enxotou todo mundo da igreja, fechou a porta e disse que só abre se o compadre for lá.

Que sandice era aquela? Por que eu? Mania tinha ele de me chamar para tudo. Às vezes por coisa à-toa lá vinha recado.

- O padre pediu p’ro senhor passar na igreja ainda hoje.

Chegava lá era só para conversar, falar da festa, da procissão ou qualquer outra coisa à-toa, quase sempre essas conversas acabavam no cigarro que ele me encomendava fazer. Sempre aquela conversa sobre anjos que eu ouvia calado. Coitado do padre Inocêncio. Seria a idade agarrando ele? Pensava, enquanto apressava o passo, deixando Anésio mais Onório para trás.
Lá chegando, a pequena multidão foi abrindo caminho, espaçando, me deixando bater na porta.

- Padre Inocêncio, estou aqui.

Nenhuma resposta. Num tempo o barulho da matraca manifestou, vindo meio de cima, como se estivesse sendo tocada em cima do andaime que o Zé do Vidro usava para trabalhar.

- Padre Inocêncio, sou eu. Abre a porta.

O grito veio em seguida.

- Arromba, Arcanjo, mas não deixa ninguém, fora você, entrar.

Arrombar aquela porta de carvalho, talhada em recortes de formão, com duas polegadas e meia de grossura? Realmente ele não estava no seu juízo. Dei a volta e entrei pela porta lateral, arrombada sem muito esforço.

- Padre Inocêncio, onde o senhor está?

- Aqui em cima, Arcanjo. Acode aqui, Arcanjo.

Padre Inocêncio estava em cima do andaime, com a matraca numa mão e um castiçal com três velas acesas na outra. Encantoava um vulto que, de longe, não distingui, só percebi o contorno na sombra. Era baixo, envergado para frente e estava trepado no alto do altar em construção. A sombra projetada na parede, pela luz tênue do castiçal, só se mexia quando o padre, receoso, tentava chegar mais perto apontando as velas em riste. Nessa hora, o efeito era assustador, o vulto não tinha mais para onde correr, padre Inocêncio dominava a situação.

- Arcanjo, é ele, está cercado o anjo ruim, o cão, peguei. Segura a vela e a matraca, não deixa ele escapar que vou buscar os paramentos e a água benta. Peguei ele agachado atrás do altar e tirei todos de dentro da igreja, esse bicho é perigoso, quando falei com ele, não respondeu e foi fugindo, pulando dentro das sombras.
O padre suava nervoso, demostrando uma agilidade quase impossível na sua idade. Enquanto ele descia do andaime, fiquei vigiando a sombra, espantado, ao mesmo tempo que tentava chegar mais perto para ver se distinguia pelo menos a fisionomia do coisa ruim. Foi no chegar o castiçal mais perto que me espantei mais ainda, o diabo não era o vulto. Nem fugir ele conseguiria, estava mais assustado que padre Inocêncio que já voltava para exorcizar o lugar com seu latim fluente.

- Padre Inocêncio, esse coitado não é o coisa ruim, é o Ditinho da Juvina, ele é surdo-mudo e ruim da idéia, deve de ter fugido da Malhada.

Ele fez o pelo sinal enquanto fui ajudando o coitado do Ditinho passar do altar para o andaime. Na porta, arrombada, o povo espiava de soslaio o medo com que o pobre diabo olhava o padre Inocêncio recolher a matraca num silêncio todo.




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Irino do Além

As duas portas, sempre abertas, no cômodo caiado há muito, mais banco que mesa e, fechando a porta do fundo, o balcão, fora a fora, dividia a mercadoria do freguês. Dividia a prosa fuxiquenta com todo tipo de gente que ali parava. Gente vinda dos arredores, os moradores do lugar e quem mais chegasse.
Seu Alcebíades era manco, mas havia virado Manco na maldade de gente poderosa que firmou esse chamar. No começo, se importava, depois foi se acostumando.
A venda ficava na Rua de Cima, quase em frente da igreja em construção. Era ali que o pai tomava as suas, todo dia, de tardinha. Carecer não carecia, pois o cavalo levava ele sozinho para casa, mas era do costume, desde que fui ficando moça, buscá-lo na venda. Pouco pela quantia que ele bebia e levava para beber no caminho, pouco para vigiar as anotações dos haveres que se faziam no fiado dele, e muito para ver os moços e ouvir a falação do Manco. Entretinha.
Ele já estava acostumado, saía dali noite indo, eu na garupa. Varava a Vila pela Rua de Baixo até ganhar a estrada do Lajeado e, de quando em quando:

- Qué um gole, minha fia?

Eu nunca queria. Quando passávamos a última casa da rua o medo sempre tomava conta. No cochilo dele, vez em quando despertava.

- Qué um gole, minha fia?

- Quero não, meu pai. E o medo tomava conta.

Num dia, de repente, no negror da noite, apareceu aquele vulto enorme, desmontado, puxando o cavalo pela rédea, com aquele clarão na cara parecendo fogo pegando embaixo do chapéu.
Meu coração foi parar na boca, o pai deu um pulo e pôs a garrafa em riste.

- Qué um gole, seu moço?

O clarão na cara da figura desapareceu no escuro e ela também. O medo rodopiou por dentro.

- O que é isso, minha fia?

- Assombração. Respondi, tremendo dos pés à cabeça.

De novo a cara de fogo apareceu, e não estava só, vinham muitos vultos atrás. Até o cavalo dessa vez se assustou. Quando o pai ia virando o animal para correr, aquela voz grossa falou, com os braços abertos como se quisesse pegar a gente:

- Noite, moça Adelaide. Noite, seu Benzinho.

Era Baldino chegando e parecia assombração quando tentava acender o cigarro de palha com a binga nova.
Quando cheguei, no outro dia, para buscar o pai na venda, lá só se mangava dele, oferecendo pinga para assombração. Ele mesmo quem contou.

- E elas bebe mesmo. Dizia ele.

Foi o que bastou para o Manco e os amigos fazerem a brincadeira, o escolhido foi Irino. O dia, em que eu não fosse buscar ele.
Irino arranjou um lençol de algodão, furou o lugar de enfiar a cabeça, separou numa lata cal e alvaiade e ficou esperando o dia em que estivesse só. Nesse dia, ao sair da venda, deram para ele mais uma garrafa cheia, a sem paga. A noite era um breu. Irino, ajudado pelo Manco mais Nacleto, vestiu o lençol, passou nos cabelos, no rosto e no chapéu, o alvaiade com cal e saiu a galope. Quando chegou na estrada do Lajeado, escolheu a melhor moita. Acendeu sete velas.
Ia o pai pelo caminho, no seu cochilo, gole, cochilo, outro gole. Quando ouviu no meio do mato:Se do mal for o pagão
Combino judiar não
Se do bem for o cristão
Espeto com meu ferrão
Ele assustado.

- Virgem Maria!

Chegou perto e viu a roda de vela e Irino aparecendo com aquela roupa muito maior que ele. A luz das velas fazia a sombra dançar pela copa do pequizeiro, era assombração em pessoa.

- Qué um gole, seu moço? Esticando a mão com a garrafa.

Irino olhou bem para ele e falou.

- Se do bem for o cristão, espeto com meu ferrão.

O pai respondeu:

- Sou do bem não, nem do mal, seu moço. Sou só do gole e da boa prosa, seu sombração.

- E é boa essa pinga, cristão? Perguntou Irino.

- Das boa, é lá da venda do Manco, cunhece? Fica no Vai Vem perto da igr..... intendência. O Manco num ingana ninguém, só gosta de falá, as vêiz, um poco do alheio.

Desarrolhou a garrafa e passou para Irino que, surpreso com a reação dele, acabou tomando um gole grande e começou a fazer a sua latumia.

- Tenho que levá ao menos trêis alma comigo.

O pai não deixava ele falar e foi dando pinga e fingindo beber igual, dando pinga e ajudando a escolher as almas, desconversando a conversa dele. A noite foi passando, a assombração se embebedando, meu pai dominando a conversa.

- Qué mais um gole, seu sombração?

A situação ficou no laço bem apertado em volta de Irino, já bêbado de cair. Foi amarrado na sela e levado para a venda, puxando o cavalo, o pai com a assombração amarrada, vez em quanto tomando uma talagada e apontando com a garrafa.

- Seu sombração, qué um gole? Seu sombração.

O dia ia amanhecendo quando ele bateu na porta. O Manco abriu, levou um susto. O pai entrou com Irino, amarrou ele no pé duma mesa e pediu duas pingas. Para o Manco ver a assombração beber.
Manco contou que era brincadeira, que aquele era Irino. Pai dizia que era só paricido. Que a sombração era ardilosa, gostava de parecer com os do lugar prá fazê enganação. Que ia esperar o povo na venda prá ver que a sombração gostava é por dimais de pinga da boa.
E foi chegando gente, a venda foi enchendo e o pai pondo pinga na boca de Irino, amarrado no pé da mesa. Foi preciso que jogassem um balde d’água e lavassem a cara da assombração, ali, no meio da venda, com o povo olhando para ele acreditar.
E foi desse jeito que Irino, desse dia em diante, passou a ser mais conhecido como Irino do Além.




°°°





Lalinha


Para dor de cabeça, rezava Lalinha.
Encontrei Nossa Senhora
Sentada na pedra fria
Benzendo dor de cabeça
Do seu bento Filho

Para Antenor, Lalinha dizia.

- Cura tudo, é só rezar com fé, pondo a mão no lugar da dor. Se for uma ferida muda o nome mas mantém o fervor. Assim.
Encontrei Nossa Senhora
Sentada na pedra fria
Benzendo dor de ferida
Do seu bento Filho


- Mantém sempre o “benzendo dor”. Se for cobreiro.
Encontrei Nossa Senhora
Sentada na pedra fria
Benzendo dor de cobreiro
Do seu bento Filho
Para Lalinha, Antenor perguntava.

- Cura só doença? E dor de amor, cura?

- Cura não, só cura dor instalada. Dor de amor dói mas é por dentro, lateja mas o corpo não distingue.

Respondia Lalinha e ponderava.

- Mas... Sabe-se lá, nunca vi falar... Às vezes, conforme a fé... Que negócio é esse de amor, Antenor, tá atingido?

Antenor quase suspirando.

- E dói, Lalinha, dói tanto, Lalinha.

A mão de Lalinha no peito de Antenor. E ele, de olhos fechados, concentrava com fervor na reza.
Encontrei Nossa Senhora
Sentada na pedra fria
Benzendo dor de amor
Do besta do Antenor

E lascou o beijo na boca dele.




°°°




Nome de macho


João mais Durvalina chegaram na boca da noite. Mal apearam já souberam do convite para batismo. A alegria foi comemorada na mesa, ao redor da panela de arroz com galinha.
Depois do café:

- Lila descansa no mês. Dona Custódia já chegou prá apará.

- Agora é home, né cumpadre?

- O que Deus mandá. Peço que leve os nome e, quando nascê, mando recado se é home ou muié, e o cumpadre rigistra cum o Climério, no cartório. Quando nóis for batizá, i’eu pego o papel.

E escreveu num papel:

Noemi
Isidoro
Gonçalves

- Se for muié, Noemi Gonçalves e se for home, Isidoro Gonçalves. Entendeu?

- Pois sim, cumpadre.

O mês passou depressa e, no dia 24, nasceu o menino. Dia de muita alegria para Tiburço, era homem.
No mesmo dia que o umbigo caiu, passou Baldino com sua mulada.

- Avisa o cumpadre João que nasceu e é minino. A Lila passa bem e, no cumeço de maio, vamo p’ro batismo.

Foi o positivo.
Baldino deu o aviso, mal chegou à rua. João imediatamente bateu na casa de seu Climério, para o registro. Entregou o papel amassado com os nomes, contou que era homem, o filho do Tiburço, e ficou de buscar a certidão para a semana.
Assim fez.
Mês de maio, Lila feliz da vida com o batistério na mão. Durvalina levava o afilhado no colo debaixo da sombrinha. Mataram um capado e festejaram até tarde.

- Cumpadre, aqui tá o rigistro.

Tiburço desdobrou o papel e, quando leu, levou o maior susto.

- Mas o qui é isso? Tá errado. Pois nome de muié.

Foram ver, o nome na certidão de batismo estava Noemi Isidoro Gonçalves, sexo feminino.
Imediatamente procuraram Climério, que os levou ao cartório, já quase de madrugada. Abriu o livro e, na luz da lamparina, era assim mesmo que estava registrado.
Climério, falando sem graça.

- Mais eu dei p’ra dona Dita fazê o registro e avisei que era o nome de baixo.

No outro dia, dona Dita toda encabulada.

- Seu Climério, pedi p’ra Salete fazer.

- Seu Climério, dona Dita mandou fazer mas não explicou nada do nome. Eu pensei que fosse mulher, justificou Salete.

Como já havia apontamentos de muitos nascimentos depois daquele, não era possível fazer uma ressalva. Só com ordem de um juiz.
Ficou assim combinado, quando viesse um juiz, Climério faria os requerimentos para mudar o nome.
Sete anos depois, apareceu o juiz, mas Climério não lembrou do caso, nem avisou Tiburço. E assim ficou no esquecer de todos.

Era no tempo da primeira eleição com o voto de mulher. O juiz fazia a chamada pelo nome, o eleitor respondia a presença, dirigia-se à mesa, declarava o voto e assinava o livro.

- Noemi Isidoro Gonçalves.

- Presente. Respondi. E ele repetiu.

Eu repeti.

Ele mandou me prender.


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Abrigo


O calor estava ausente daquelas mãos como se a morte fosse tomar por elas o pedaço primeiro.
Nem o sol da manhã no pátio pequeno conseguia pejar de calor aquelas mãos frias, trêmulas, em arremedo de gestos.
Sentiam saudades de outras mãos, de algum calor, da muita lida, de afagar, de segurar.
Aquele lugar era tão triste.
Triste de esperar, de não estar.
O mesmo diário silêncio.
O mesmo terço de cor, sem cor.
E a fé esquecida no acostumado.
Conformada como se fé fosse sina.
E as mãos não mais lidavam com as misérias do corpo, esquecidas de como segurar, ali mesmo, juntas, tristes, trêmulas, deslembrando.
A luz estava quase ausente daqueles olhos esbranquiçados pela penumbra que seduzia silenciosa.
Olhos que, ainda, guardavam imagens puídas pelo cansaço, sendo esquecidas pela retina, pelo entendimento.
Aquele lugar era tão triste.
Triste de esperar, de não estar, de se olhar.
O cheiro vagava pelos espaços sem significar.
O cheiro da urina, das fezes, do corpo esmaecido, incorporado ao abafado do cômodo.
O mesmo cheiro na comida servida, na roupa fervida. Um cheiro só de desolação, um cheiro mofo.
Um cheiro de silêncio.
De conformação.
Ouvir o quase nada... o heim!
O confuso do dia, esbravejando na quase ausência, no sino triste, no barulho calado.
Aquele lugar era tão triste.
Triste de esperar, de não estar.
De querer ouvir.
De esquecer sonhar.
A consciência cochilava, por qualquer pedaço de tempo, para esquecer aquele lugar.
Aquele lugar tão triste.
Aquela fé tão triste.
De não estar esquecida.
Aquela espera tão triste.
No asilo com o nome daquele São Vicente.
Tão triste.
O lugar de esperar, anjos e demônios.
O lugar de não estar.
Último de esperar.
Triste, tão triste...




°°°


O escrivão


No particular era esquisito, não deixava ninguém entrar no quarto, ele mesmo arrumava de manhã, a porta trazia sempre trancada e até o buraco da fechadura ele tampava, modo evitar o curioso.
Mas no trato com todos era cortês, passava despercebido o tempo todo no seu bom dia, boa tarde, boa noite, educado. Nunca vira ele comer, sempre não estava nessas horas. Era esquisito, não demorava mais de uma semana entre o chegar e o ir, não usava a casinha, banho nunca tomou. Quando chegava com os olhos fundos, aquela finura de bigode e as mãos enormes penduradas na sua magreza, formava um alvoroço na cozinha, longe das vistas de dona Laura que não admitia nenhuma forma de intimidade com os hóspedes desde que a filha fugiu com o turco Nassim da Chita. Era a tristeza dela desde um ano.
Quando seu Demotério chegava, nas duas ou três vezes que aparecia no ano, o mistério se instalava na pensão, em cochichos os comentários se espalhavam. Às vezes, até dona Laura, distraída, deixava escapar algum comentário.

– Home esquisito.

A primeira vez que chegou à pensão, declarou como ofício ser escrivão, mas a bisbilhotice de Bibiano confirmou que não era na intendência que ele ia todo dia e sim na igreja e que lá se trancava com o padre na sacristia e ficava o tempo todo. Somente padre Anselmo saía vez ou outra, sempre com o semblante carregado.
No lugar todo, ninguém prestava atenção no seu Demotério tirando eu, Bibiano, dona Darvina e dona Laura. Sendo que elas se limitavam a reparar o esquisito dele só na pensão. Aquilo mexia tanto com nossa curiosidade que, de idéia misturada, eu mais Bibiano resolvemos espiar o que acontecia na sacristia. Tentamos o buraco da fechadura, as frestas da janela, tudo tapado. Bibiano era moleque espevitado, meio da minha idade mas com intenção de esperto, pensava miúdo e quis furar um buraco na parede de adobe. Quando ele estava com a pua na mão, seu Olegário, que ia passando, viu e deu a maior bronca nele.
De tarde, na pensão, fizemos o plano definitivo, o modo de espiar a sacristia era pelo telhado, a melhor hora, a de menos trabalho na pensão. Era fácil sair da presença de dona Laura, também havia a vantagem no sol quente da tarde formando ausências em volta da igreja.
Apenas com sinal de olhar combinamos, é hoje. Subimos pelo muro, usando uma tábua para passar ao telhado, retiramos duas telhas e entramos direto em cima da sacristia, pelo forro. Com medo do barulho delatar e a curiosidade cautelosa, descobrimos as frestas no forro, vimos os dois frente a frente, seu Demotério e o padre, sentados à mesa com um livro grande aberto entre os dois. No silêncio, o padre puxou o livro e começou a escrever. Seu Demotério com aquela voz grossa e na economia de palavras que já conhecíamos, interrompendo o padre, falou .
- Essa eu que levo. É alma ruim.

- Discordo, ele rezou, temeu a Deus e passou seis meses sem agravo a ninguém. Está redimindo. Se necessário, levo ao superior.

O susto no ouvido só não foi maior porque fui mudar a mão de apoio para a mesma tábua que Bibiano apoiava e ela não agüentou o peso de nós dois, despencamos. Bibiano no colo do seu Demotério e eu no do padre.
Bibiano não se lembrava de nada depois, eu, menos ainda. Seu Demotério cedo teve estrada. O padre não demonstrava nada quando nos via. Na pensão ninguém sentiu nossa falta, ninguém ralhou, parecia que tínhamos sonhado o mesmo sonho.
Seu Demotério nunca mais apareceu na pensão, o padre ficou doente e veio outro no lugar. Bibiano foi distanciando, arrumou um chapéu que nunca tirava da cabeça, foi esquisitando.
Um dia, passado tempo, no mudar um catre de lugar a pedido de dona Laura esbarrei sem querer em Bibiano. O chapéu dele caiu e pude ver o chavelho nascendo. Ele sorriu e veio como se fosse me abraçar, com a mão direita puxou uma pena branca que nascia nas minhas asas em formação e sorriu. E sorrimos...




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Olho do boi


Não queria ir, indo.
Calvário meu.
Puxado pelo laço prendido na argola do focinho, Lambari parecia ter entendido tudo. Caminhava lento, parava toda hora e olhava comprido para trás.
Desassossego meu, e as lembranças cutucando por dentro.Êia, Lambari, êia, Cafuncho...
Milho indo, estrada ficando...
Boi formoso, carro cantando...

Sentado no cabeção, enxergando o pai por entre os chifres na entrada da Rua de Cima, provocando cobiça de Zarias pela canga de bois.

- Põe preço, seu Lino...

- O que num tem preço, no preço está, seu Zarias, dizia o pai passando a mão no lombo de Lambari.

Não queria fazer, fazendo.
Casa de Dito Cotobó, uma das primeiras da rua, com um pequeno curral na porta.

- Só pago 100. É boi véio, inda mais de carro, carne dura, só pago os 100. Ocê me dá ele morto, vivo num negoceio não.

Prevalecia Dito da situação. Quem num sabia da seca? Da tristeza do pai com a lida, depois da morte da mãe e de tudo que aconteceu? Nunca mais saíra de casa, falava quase nada o dia inteiro, era a vida da morte estampada na figura definhada, inconformada e sofrida. Desistindo da vida, como se todos os anos de labuta despencassem em cima, duma vez.
Dito sabia disso tudo e agora tirava proveito da minha pouca idade, da necessidade aparecida de dinheiro.

- E só compro o boi em consideração ao seu pai, prevalecendo.

Quando percebi, já estava com o machado na mão e ouvia Dito recomendar:

- Se quiser amarra ele no tronco.

Me vieram os pedaços primeiros da infância. Lambari descendo da invernada, garboso, encostando no cocho, esperando pela lida.
Lambari entristecido com a morte de Cafuncho, seu par de junta, picado de cobra.
Lambari, já velho puxando arado, serviço miúdo, não para ele que também nessa labuta tinha garbo.
Tristeza, e aquele machado queimando minhas mãos.
Me veio bem-querença, desde os primeiros alembros.
Calça curta ainda, ver Lambari descendo da invernada todo dia, no raiar, tomar encosto no cocho e esperar Lopoldo acabar de tirar o leite. Depois, o cangar das juntas.Êia, Lambari, êia, Cafuncho...
Milho indo, estrada ficando...
Boi formoso, carro cantando...

O machado nas mãos, o lembrar queimando por dentro.
Quando saí na porta do terreiro, o olhar de Lambari me pegou inteiro. O brilho do olho foi se apagando devagar e aquela tristeza resvalou para dentro de mim. Não usei o laço, não carecia. Lambari ficou parado na minha frente, olhar mais triste que o do pai desistindo da vida. Ergui o machado e naquela hora nada se mexeu, nem eu. Lambari se virou em trote pequeno ganhou distância e veio em galope, como se sua sina fosse só correr. No começo, achei que era em minha direção, mas não conseguia me mexer. À medida que o boi avançava, fui percebendo seus olhos, agora não me olhando mais, parecia fitar um ponto qualquer.
Poeira e o boi se aproximando.... Barulho do galope e o boi se aproximando.
Sentia o suor escorrer pelas costas, o corpo todo paralisado como pedra. Vinha ele.
À pouca distância, soltou as patas dianteiras no ar e cravou a testa no tronco, caindo morto ao meu lado, no meio da poeira que levantou.
Muitos anos já se passaram, hoje não careço precisão, mas não passa um só dia sem que o olhar do boi Lambari não lateje dentro de mim.Êia, Lambari, êia, Cafuncho...
Milho indo, estrada ficando...
Boi formoso, carro cantando...




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Dentro do poeta

Era só o poeta envelhecido com seus demônios, cansado, que voltava como se fosse possível voltar com todos eles. Deixar as cicatrizes cerzidas com o fio dos caminhos e se lembrar de ser são. Era só o poeta, em metáforas; de alma e corpo, peregrino pela vida, juntando pedaços desde que partira.
Era só o poeta e seus demônios que calavam versos e secavam lágrimas. Ele voltava à origem naquela madrugada de casas adormecidas e ruas silenciosas.
O dia amanhecia no quintal, colorindo os rastros que ela deixava quando caminhava para o portão. Parecia adivinhar quem chegava. Naquele abraço amoroso recebeu suas lonjuras. E eram tantas! Ele olhava para a mãe e as palavras pulavam do pensamento, como se ela as dissesse.sou a mulher
que finda, ereta
e insubmissa,
a última etapa da vida

sou a mulher
que chora,
pelos cantos,
escondida,
o tempo que só
dentro de mim ficou

sou a mulher
que carrega no ventre
o fim latejando,
minha primeira gravidez
e meu derradeiro parto

sou a mulher
ereta e insubmissa,
que desde nascida
finda

Olhava seu pai, enrolando o cigarro para lhe dar com as mãos em calos e perdão, as palavras falando em silêncio, como se ele as dissesse.
do eito
onde capino o dia,
confiro meu verso,
pari o poeta

Da porta dos fundos da casa avistava os caminhos, espalhados no lugar da infância, iguais e distantes. Sem se dar conta, os passos levavam para a Meia Légua, guardada pelo buriti solitário, farfalhando.
sina de ser tão, sertão

posto o horizonte no dia,
linha estendida na imensidão,
caminho de tropas passando

vento balança copa e tronco
ensinando dançar,
ninho de juriti,
folha nova despertando,
cacho, coco, capivaras, bem-te-vis
chuva fina na terra fértil
fecunda a raiz lançada aqui

passeia o sol no compasso
traça a luz, projeta horas

ser tão, sertão
nos rastos das boiadas
seguindo
lusco-fusco, vaga-lumes
solidão

noite que a lua segue em compasso,
dança
ermo de cerrado, sinfonia,
solo de pirilampos
escutado sob
o silêncio das estrelas

o tempo são marcos
de ser tão, sertão,
na terra
onde folhas viram asas
do meu tronco buriti
Ouvia dentro a voz, era o poeta ouvindo, recebendo os versos, se calando em versos, ouvindo o convite do rio.
molha os pés
e as mãos em calos
nas águas da infância,
sou rio ponte,
rio pedra,
rio fonte,

sou caminho perdido
na curva do tempo

sou rio indo, ardendo
queimando paixões

sou rio ido
angustiado
em ser

rio velho,
jazindo,
indo, indo...

sou rio pedra,
rio ponte,
rio fonte,
indo...
Indo...
Voltava pelo trieiro, sem versos, sem paz. Pejado de demônios perquirindo, encontrando, um a um, quem já levara por dentro pelas estradas.
ainda somos as pessoas que ardem
e se esvaem
em procuras,
tecendo em sonhos,
encontros e despedidas,
a solidão de nossas
pequenas histórias

Passava pela porta e via a colcha de retalhos pendurada na cerca daquela casa simples que ela sempre morou, balançando no vento as palavras.
retalhos de vida,
dispostos juntos,
são das cores alegria
e tristeza

retalhos juntos,
dispostos na vida,
formam as cores da chegada
e da partida

retalhos dispostos,
na vida juntos,
cor das lembranças
a das saudades

retalhos de vida,
dispostos juntos,
na cor da labuta
tecendo a colcha de retalhos
com que cobres
tua angústia
Quando ele a viu, o olhar não acreditou, o corpo não acreditou, seus demônios não acreditaram. O tempo lhe caíra bem, lhe dera definitiva beleza e espera.
sê bem-vindo,
amado meu,
inesperado
mas bem-vindo,
amado meu

não te preparei versos e luares,
nem os braços
em abraços,
amado meu

mas sê muito bem-vindo,
amado meu,
seguiste os vaga-lumes,
não foi? amado meu

te pedia para voltar
depois de cada entardecer,
amado meu,
no piscar de cada estrela,
amado meu,
pedia aos vaga-lumes
que as imitassem sem parar
até te encontrar,
amado meu
Ele mal acreditava. Ela estava ali na sua frente, não escondida nos caminhos, mas ali, amor igual, restando igual, esperando igual, no tempo desigual, em lamento.
parte arrancada,
distante,
dilacerada,
mas que lateja e arde

parte e universo

história esmaecida
nas lembranças,
levada na poeira das estrelas

tempo feitor
reunindo pedaços
dentro de nós

corpos já puídos pelo tempo,
asseverando o amor
dentro de nós

miríade do que já fomos,
mutilada,
que ainda sinto
por dentro de mim

Havia tanto amor naquele abraço, o cheiro dela era tão ela, não havia demônios ali. Se doava.
entrego
aos teus olhos
os meus em lágrimas,
nesse momento maior de amor,

te pertenço por inteiro
na lucidez
desse silêncio

com teu rosto rente ao meu
e minhas mãos
sem mágoa
te falo do meu
amor definitivo
na poesia
dessas lágrimas,
que teus olhos
também conhecem

plenitude
maior do amor,
instante
maior do amor
em cristais
no meu pensamento
Ele que voltara apenas para restar ali ouvia cada palavra, com ouvidos de procura misturados na poeira, vagando.
queria te dar a aurora
se despindo na manhã
e orvalhar os caminhos
dos teus gestos pelo dia,
queria te dar momentos
que jamais tivemos
e todos os sonhos
que ainda não sonhei,
queria te dar mais,
tanto mais,
nas palavras usadas
em desbotadas metáforas,
queria te dar muito mais
do meu amor
que não envelhece,
mesmo esperando
só dentro de mim


O poeta não se pertencia, havia a chusma de demônios impelindo. Acreditava voltar, acreditava ficar, acreditava amá-la depois de tanto tempo urdindo distâncias. Não conhecia tanto a alma que amava. Seus pensamentos transpareciam e ouviam os versos.
por não te conhecer tanto
és perfeito dentro de mim,
assim, idealizo, sonho
e sofro a tua ausência

alma que me ama

minha alma também te ama
mas está, ainda, aprisionada
no meu corpo
que todos os dias sente saudades
do teu corpo e da tua alma

alma que me ama

prisioneira como a minha,
vivendo a ilusão de ser só alma,
num corpo que não conheço tanto
mas que é perfeito dentro de mim

alma que me ama

num dia nem vestígios
do meu corpo haverá

um dia quando só alma for,
no espaço infinito das almas,
ainda, doerá a lembrança
de tê-lo tido, sem tê-lo
de tê-lo esquecido, sem esquecê-lo
Era o poeta que só ouvia versos, só calava as palavras dentro de si. Era o poeta que voltava com o corpo cheio de demônios e olhava de soslaio a intenção aprisionada na ponta da estrada, chamando novamente.
Ela olhou para a direção do seu olhar e enxergou, triste, o lugar de ir, de só ir. E afirmou em lamento.foi num lampejo de
angústia que Deus,
injusto,
se há,
nos formou um ser só,
deu solitário limite
na enorme ternura

em outro lampejo
permitiu, ainda,
a chama acesa

injusto,
se há,
reluta severo
em de verdade nos criar

embaralha o tempo
na dor que
recende dos nossos corpos
e num gesto de
generosidade
nos dá referências,
pessoas amadas
e nega,
na sua angústia,
que fossem
para nós dois as mesmas

se há,
injusto que é,
quem sabe num dia
de muita melancolia
nos permita alma
e carne se pertencer

se tarde for,
injusto,
se há

permitirá
nos contentarmos
com a lembrança
do que nunca fomos
Despedia-se do poeta e ele se despedia dela, a estrada o retinha, lugar de ziguezaguear com seus demônios.
Os versos chegavam doloridos de volta ao ventre, inéditos, sem vida.
Ele restou em litígio com sua chusma de demônios pela estrada a fora.
Mas ela cantava o definitivo canto.vais durando em mim sempre
e sempre durarás em mim
pois tenho zelo em pertencer-te
e sinto a cada quadra do tempo
a doce saudade de ter-te

o tempo curva meu corpo
e vais durando,
apura minha sensibilidade
e vais durando

porque sempre
é quando,
estás em mim sempre
Tantos versos chorando nas palavras não ditas, só dentro, palavras tristes. Lágrimas que salgavam a boca dos demônios, que cantavam em coro pelo caminho, mesmo quando calavam dentro do poeta sem versos.
a tristeza
escorria no olhar

não escutavas
nada ao teu redor

a sinfonia do entardecer
deslumbrava
colorida

tristeza
escorria dos ouvidos

não vias
nada ao teu redor

a tristeza continha
teu corpo
para não escorrer
pelo chão
como lágrimas



°°°







Lado de lá do rio


Todos os dias, ela parecia um ponteiro de relógio, na mesma hora passava na esquina rumo à igreja. Todos os dias, ele estava esperando com aquele cheiro de não dormido, de banca de jogo. Olhava fixo cada movimento de corpo, cada semblante dela.
No começo, denotava aversão por encontrá-lo. Nunca olhava nos seus olhos de verdade, sempre o fazia de longe meio rabo de olho.
Ele não; esmiuçava no olhar cada pedaço do corpo, cada gesto, olhava querendo.
Com o tempo, Celeste foi acostumando encontrar Tartulfo, foi ousando observar discretamente. Veio o primeiro sorriso, as primeiras palavras trocadas.
Um dia, Tartulfo a acompanhou até a igreja; em outro foi à porta de sua casa e, num tempo, acabaram se casando. Gosto a família não punha, tinha muita birra dele, mas sua madrinha Altina sempre dizia:

- Homem, mesmo que não preste, é sempre bom ter um.

Com jeito, Tartulfo foi conquistando um por um da família e com o tempo já tinha a confiança de todos, até um à-meia com o cunhado no alambique arrendado de Mané Ditinho, tinha.
O sogro no começo não queria o casamento da filha com aquele sujeito, agora era o que mais admirava o genro que demonstrou ser trabalhador, dedicado à filha e, ainda, tinha largado a banca de jogo.
Vindo de longe e sozinho no mundo, Tartulfo achou neles o que mais queria na vida. Os negócios com o cunhado prosperavam rapidamente e logo compraram o alambique de Mané Ditinho, com um pedaço de terra já formado de cana, do outro lado do Braço, na combinação de mudar o alambique para lá.
Quando chegaram para desmontar o barracão, Eulâmpio apareceu, como quem não quer nada, montado numa mula preta e velha.

- Fosse o nhôr num levava não, o home que montô ele era gente enfezada com um tudo, rogou praga, diz que tinha parte com o diabo e o tinhoso é quem faiz a cachaça prele e só trabaia do lado de cá do rio.

Riram muito, enquanto faziam a mudança, e não deram a menor importância achando muita tolice aquela conversa.
Nos dias passando, o caibramento do barracão quase pronto, a destilaria de cobre já no lugar, a cana amontoada pronta para o primeiro destilo, alegria uma só, de Tartulfo, do cunhado e do sogro, sempre por ali.
À medida que a lenha queimava, eriçando o fogo, a alegria era maior pelo pouco tempo gasto na montagem do alambique e pelo lugar achado na curva do rio, em terra própria.

- O primeiro gole é do meu sogro, gritava Tartulfo, rindo todo.

Quando o sogro ia falar que era muita lenha e o alicerce estava mole, a terra tremeu e a destilaria de cobre foi andando dentro do barracão, pulando feito sapo, derrubando o esteio que ficava no rumo do barranco. O telhado quase pronto foi abaixo e ela, enganchada numa pedra a uns vinte metros para frente, restou, tangendo a margem do rio.
Foi um susto em todos, menos para Eulâmpio que vinha chegando na sua mula velha. Num gesto de mão, sem apear do animal, chegou perto, colheu com um coité da bica de cobre, o gole primeiro e falou.

- É garapa seu moço. Num avisei nhôr que o diabo só faiz cachaça do lado de lá do rio.


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Fogo pelas ventas


Não havia ninguém no mundo que se parecia mais com uma vela do que Otacílio. Pudera, desde menino freqüentava aquela sacristia.
Tinha sido coroinha quando pequeno e, por mais de sessenta anos, era sacristão. Já havia enterrado dois padres, um monsenhor, e um cônego.
Magro, seu aspecto era o de uma vela; conversar com ele de perto não dava, não que tivesse mal hálito, era o cheiro de vela. Já quase cego, só enxergava direito firmando as vistas. Mas de uma devoção desmedida com a paróquia, a padroeira e o vigário. Cuidava dos paramentos, imagens e demais ornamentos com zelo, sabia onde cada um estava guardado na igreja.
Uma vez, a meninada escondeu o Cristo morto, ele passou apurado até descobri-lo escondido atrás do altar de Nossa Senhora Aparecida. Desse dia em diante, nas vésperas da Semana Santa, ele vigiava a sacristia dia e noite.
Com a velhice, mal enxergando e ouvindo, deixavam que ele fizesse apenas algumas tarefas mais leves. Entre elas, acender as velas. Era um ritual. Primeiro as do altar mor, depois, um a um, o de Santo Antônio, Nossa Senhora Aparecida, São Judas Tadeu, Nossa Senhora da Conceição e, por último, o castiçal que ficava em cima da mesa da sacristia, que o padre ao celebrar a missa levava para o altar.
Todos os dias, após acender as velas, meia hora de conversa com dona Cotinha, na sacristia, onde a vida alheia era revista em detalhes, principalmente a de Totonho Costa, fazendeiro, político, homem dos mais influentes da região.
Otacílio tinha muito medo dele, não ficava um segundo perto. Dizia para dona Cotinha, na sua fala mole, cheirando à vela:

- Seu Totonho gosto não, muito brabo, está sempre botando fogo pelas ventas.

Razões Otacílio tinha de sobra. O fazendeiro só andava com os capangas guarnecendo, era de uma ignorância sabida e já provada por todos. A qualquer lugar que fosse, primeiro os capangas na frente.
A Cobra Verde ficava na ponta da Rua de Cima. Casa de mulher, toda caiada de verde, os cômodos forrados de pano vermelho, até a cozinha. Extravagância de dona Preta, mantida por Totonho Costa, freguês mais importante, para quem ela sempre guardava uma novidade.
Na véspera, Dé Cristão, seu capanga, chegava pelos fundos para dar aviso. Dona Preta providenciava os preparos e, nesse dia, a casa não abria. Totonho chegava de tardinha, desmontava e seus capangas soltavam os cavalos no pasto, atrás da casa, e ninguém mais se aproximava do lugar.
Totonho Costa tinha taras que eram guardadas em segredo, a sete chaves. Parte na generosidade do dinheiro e parte no exemplo da Mudinha, que dona Preta fazia questão de mostrar para toda rapariga nova, dizendo que Totonho é quem cortara a língua dela.
Nesse dia foi igual. Duas talagadas de cachaça, já escolhida Diolinda, a cigana que, quando não tinha nenhuma novidade, era sempre a preferida. Diolinda conhecia os gostos. Na hora certa.

- Enfia a vela! Gritou Totonho.

Ela tirou a vela debaixo do travesseiro e enfiou. Foi quando o estremecer pareceu diferente das outras vezes, o corpo retesou e ela sentiu por dentro um enrijecer que não conhecia daquele jeito. A contração dos músculos quebrou a vela na sua mão, ficando um pedaço enfiado. O quietar-se do corpo era assim mesmo adormecendo, mas o esfriar não.
Só se ouviu o grito na madrugada, quando ela percebeu o frio da morte.
Foi uma correria, dona Preta não sabia o que fazer, chamou os capangas, eles também não.
Dé Cristão acordou o padre quando já amanhecia. Contou que o ataque se deu no caminho, quando o Coronel ia trocar de roupa, depois de se banhar no Lajeado. Demoraram a encontrar o corpo e resolveram trazer para a igreja, por ser mais perto. Além do mais, eles não conseguiam vestir as roupas no morto.
O vigário foi na conversa, ajudou a pôr o defunto em cima da mesa da sacristia. Por causa do membro enrijecido, o coronel foi colocado de bruços.

- Vamos banhar ele e cortar a parte de trás da roupa prá vestir. Mande avisar a família. Pediu.
E saíram da sacristia, deixando o corpo estendido de bruços na mesa.
Nisso entra Otacílio para acender a vela e acende o pavio que saía do ânus do morto.
Dona Cotinha, espantada, já dentro da sacristia.

- O que é isso, seu Otacílio? É seu Totonho Costa?

Quando o sacristão olhou para trás, assustado, e firmou as vistas, o toco de vela que arrolhava o ânus do morto já havia derretido e os gases do corpo em contato com a chama provocavam uma labareda de fogo.
O sacristão espantado. Dona Cotinha desmaiando.

- Divino Pai Eterno, pelas ventas eu já sabia, mas pelo rabo, ainda não. Cruz credo.





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Fiado


Dá uma quarta de farinha, seu Manco. Ranja prá nóis mode cumê bom lencasa. Das rumação que feiz, cumé mesmo que chama aquele home? Aquele que amuntô na riqueza da viúva do falecido seu Quelé. Esse um mandô nóis saí das terra, caçá rumo. Nóis tamo num provisoro cum os cigano.
No abuso não, no gradecido. Cigano é povo falado, mais num é cumo é falado não, é povo bão, robin daqui e dali, mais coisa poca, coisa que tá no mundo, de quem pegá é. Coisa uma só, nada p’ra riqueza e nem p’ra ridiqueza, seu Manco, mode tal a quarta de farinha que careço e o sôr num há de negá.
Magina, seu Quelé vivo, dexava esse avexo? Inda mais que sempre fui trabaiadô, até a viúva sabe, mais ela num põe cisma no que o um faiz, não. Fica no calado e ele vai lidano do modo. É home ruim, seu Manco, parece de parte com o diabo, magina zangá pur conta dum capado que seu Quelé em vivo, deu. Tava no ponto, sangrei, no tá fazeno a lingüiçada o home viu e ralhô, tomô até os miúdo, xingô um muito, em poco num infrentei ele.
Faca tenho não, seu Manco, canivetinho de fazê, nos em hora, o pito. Pruveita, ranja tamém um dedo de fumo seu Manco, tô no escasso, o sôr põe cobro, evém a lua nova, tiro mel, faço paga dos trem.
Abuso não, semo de lida, sirviço que o sôr tivé faço. Qué rumá a cerca dos fundo? Corto pau no mato, lavradinho, sôr põe linha, tira o prumo, cerco tudo no jeito. Agrego na paga duns trem.
Tenho queixa não seu Manco, em lá ficou o cujo, mais a vida vai viveno, nele e neu, e se ele é o próprio coisa num resto prele, não. Careço é de rumá aprumo logo, fazê uns cobrim, achá um lugá longe e devotá à Nossa Senhora de altar.
Aqui? O padre num dexa nem i’eu entrá na igreja, repara d´eu tá lá cum os cigano, põe zanga iqual o um, tamém é dono, né.
Fôr priciso faço de pau, lavro manto e tudo, capelinha faço, ponho no rancho, devoto. Quero vê! Arremedo, iscundido, a capelinha da casa de seu Quelé. Sô bôbo não! Pode fiá seu Manco. Já quais sei fazê muita coisa, largo fiado p’ro sôr não.
Pode fiá na garantia da palavra, do céu Nossa Senhora vai pôr zêlo pr’eu saí da pricissão.




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Moça Davina


Davina era só pensamento, de tanto o padre falar em anjos, pensava como seria a vida deles, por que cada um tinha um da guarda? Será que, também, tinha um demônio para cada um, na tentação?
Olhava a figura do santinho que a mãe lhe dera quando pequena, o anjo protegendo a criança quase caindo no abismo. Era tão bonito aquele anjo. Será que cara teria o demônio? Pensava. Será que o padre ia zangar com ela se perguntasse? Será que Lalinha tão sabida, lia tantas coisas, podia explicar?
Davina ficava pelas tardes perdida dentro da imaginação, sonhava com o anjo, com aquela beleza toda, lhe dando a mão como fosse a criança do santinho.
Um dia, pediu que Lalinha explicasse se, como o anjo da guarda, todos tinham um demônio da tentação. Como era a cara do diabo, do anjo da guarda ela conhecia, tinha o santinho. Mas se o demônio aparecesse como ia distinguir.
Lalinha, cheia de mistério, contou que o diabo era a tentação em tudo, tinha qualquer cara que quisesse, ardiloso, era coisa ruim, era o mal. Lembra dos sete pecados? Orgulho é coisa dele, a inveja também, até uma bem pequena. Preguiça era ele atentando, a gula era ele comendo dentro da gente, a ambição e raiva, tentação dele, e a luxuria era a vontade de fazer coisas, sem-vergonhices.
Gostar de doce de leite era pecado? Perguntava Davina. Gostar não era pecado, mas comer mais do que a fome era. Respondia Lalinha.
As duas ficavam nessa conversa por horas, enumerando situações de raiva, inveja, preguiça e ambição, quando chegava na luxuria Davina queria saber mais. Não pode, é desonra, mas quando você casar pode, não é pecado, Lalinha respondia como se soubesse tudo sobre aquilo. Como? E não dói? Perguntava Davina. Não devia doer era abençoado por Deus, deve de ser bom, mas sai um pouco de sangue. Antes de casar é como se fosse o diabo fazendo, dizia Lalinha.
Durante muito tempo era o assunto das duas, onde Davina visse Lalinha sempre tinha uma pergunta. Perguntava se ela já tinha beijado. Se era pecado. Tinha que confessar? Isso era tentação?
Lalinha demonstrava conhecer o que só tinha no curioso, nunca ia contar que sabia bem pouco daqueles assuntos, gostava da admiração da amiga.

Necão conhecia todos na sala mas, mesmo assim, não se dirigiu a ninguém, foi passando, generalizando o cumprimento.

- Tarde.

Nem prestou atenção se lhe responderam ou não, foi direto para a cozinha em sorriso nenhum. A mulher do Donato, que fazia o café, foi quem lhe falou.

- O senhor acalme seu Necão que não há de ser nada, a mãe está com ela no quarto, a menina já serenou e o padre foi chamado.

- Padre, prá quê! E esse povo aí na sala? Que ajuntamento de gente é esse?

- O senhor não sabe o que aconteceu com a menina? Se pôs no choro desde cedo e começou a gritar, não deixando ninguém chegar perto, agora que abrandou. Gritava muito e falava embaralhado, sem sentido.

- Por que chamar o padre? Perguntou Necão, entrando no quarto onde a mãe e a filha abraçadas choravam.

- Foi o diabo, pai. Foi ele sim.

Enquanto falava, Davina se encolhia na cabeceira da cama num choro doído, com as cobertas tampando o corpo, ficando só a cabeça de fora. A mãe chamava por Nossa Senhora da Conceição, e Necão, sem reação nenhuma, parado no meio do quarto não entendia nada. Nesse momento o padre chegou, Davina, ao vê-lo, começou a chorar mais alto ainda e a gritar.

- Foi o diabo, seu vigário, eu não queria não.

O pai, se refazendo do susto, esbravejou com uma raiva que nunca ninguém vira.

- Diabo coisa nenhuma, cadê esse safado? Conta quem é, Davina, vou acabar com a raça dele. Quem é o desgraçado, me conta, filha?

- Calma, seu Necão, pediu o padre.

- Ela está possuída? Perguntava a mãe, chorando.

Com muito custo, o padre convenceu o casal a sair do quarto e rezou por mais de hora, enquanto os vizinhos se juntavam pelo resto da casa como se tivesse morrido alguém. Nessa hora, Necão não agüentou e pôs todo mundo para correr, já com a espingarda na mão.

- Ela falou o nome do desgraçado? Perguntava ao padre que saía do quarto com cara de pouco adianta.

Dobrando os paramentos, disse que ela nem deixava ele chegar perto e que era um despautério essa história de diabo, mas, por via das dúvidas, ele exorcizou a menina e benzeu o lugar.
Necão enfurecido entrou no quarto seguido do padre e da mulher e encontrou Davina, ainda chorando, quase nua, com o sangue escorrendo pelas pernas, tentando esconder o lençol sujo.
A mãe ao ver a filha daquele jeito, tirou o marido e o vigário do quarto, chorando, ajudou a filha limpar o sangue do seu primeiro menstruo.




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O irmão do Rutinho


O sol já ia nas grimpas do dia, esparramando quentura para todo lado, e o menino ainda no faltar das obrigações com o padre que era teimoso, imagina chamar Zé Bilú na igreja, convencer de quê, meu Deus? O povo falava até que ele tinha parte com o diabo. E agora essa do vigário chamar. Boa coisa não era.
E não era mesmo, o padre exigia de Zé Bilú que ele desse a volta e não passasse na porta da igreja, como fazia toda madrugada, quando voltava do jogo, bêbado, e gritando pela rua. Ameaçava excomungar, mandar prender.
Zé Bilú retrucava que ele num tinha nada com os particulá dele, que ele era home do mundo e num tinha respeito de quem usava saia.
A confusão foi formada, no sermão de todo dia o padre excomungava o ateu; na intendência, dava parte; falava com as gentes da política. Falava, com as carolas do lugar, da qualidade desse cidadão, não tinha profissão, ninguém sabia de onde tirava o sustento. O padre parecia não tirar o Zé Bilú do pensamento hora nenhuma. Esse, por sua vez, fazia parecer que nem era com ele. Fingia não ouvir.
Mas de madrugada sempre achava um jeito de levar um animal qualquer para defecar na porta da sacristia. No outro dia, o vigário fazia queixa para o delegado e procurava durante todo o dia Zé Bilú, sem encontrar.
Zé Bilú não corria dele, mas sempre evitava encontrá-lo, fosse para não ter o bate-boca, fosse para não enfezar o homem.
E assim foi sucedendo, excremento na porta da sacristia, falação no sermão. O delegado não tinha como fazer nada, o intendente era parceiro de jogo do excomungado. E todos foram se acostumando com a arrelia dos dois.
A vida de Zé Bilú não era só no à toa, não. Não era só no jogo o arrisco dele, tinha o garimpo no Veríssimo, no à-meia com o Rutinho, espera de sorte no cascalho, nas águas do rio. Teimosia de anos, de muito baralho partido para o lado do não, de muitos calos nas mãos que ele não dava parecença.
A não ser Baldino, que sabia e fornecia abastecimento, quase sempre no prazo de troca das poucas pedras do de sustento. A maior dava para ano, mas ficou na banca de jogo. Zanga de Rutinho. Mas Zé Bilú tinha o crédito do fornecimento e a zanga acabou aí.
Zé Bilú pôs combinação com o irmão, na evitação da mesa de jogo, enquanto não repartisse as pedras poucas que tirava. Depois disso era os dias na rua, no carteado, na arrelia com o padre, enquanto o cobre durasse.
Rutinho que ficava no pesado da lida não punha importância. O irmão, quando pegava na bateia, trabalhava num dia o que valia muitos. Às vezes, Zé Bilú chegava, sentava no barranco sem nem tirar as botinas e ficava olhando o cascalho para lavar, como naquele dia, com o olhar fixo num rumo, pensando sabe lá o quê. Ficou quase a manhã assim.
Não espantou Rutinho. De vez em quando ficava sentado olhando, já estava acostumado. Mas, de repente, ele levantou, passou a mão na bateia e foi no rumo certo do monte de cascalho para lavar e nem chegou a usá-la. Com a mão mesmo ele pegou a pedra, soltando um grito que foi ouvido até lá no Garimpo do Ligoso. A pedra era do tamanho de um ovo, das mais puras. Logo chegou gente de outros garimpos, tamanha a gritaria de Zé Bilú e Rutinho.

- Bamburrei minha gente, segurava o diamante com as duas mãos, punha contra o sol, pulava e gritava com o irmão e a companheirada que foi juntando.

A notícia chegou no Vai Vem, primeiro que o vento que estava soprando. Mas os irmãos não foram para lá, não. No medo de queimar a pedra esperaram um mês a passada de Baldino no voltar. Com ele foram para Minas vender o bamburro.
Com os cobres na guaiaca, puseram a labuta nas terra da viúva de Totonho Costa, comprando a parte dela, mais a de dois herdeiros, incluindo a sede. Formando com o ajunte dos pedaços, terra bastante para gado, lavoura e muita criação.
Zé Bilú, passados quase seis meses, voltou para a mesa de jogo como se não tivesse acontecido nada. De madrugada, a mesma algazarra de sempre, a mesma arrelia com o padre, o animal defecando na porta da sacristia. E para surpresa sua, não teve sermão.
O padre nunca mais fez queixa de Zé Bilú para o delegado nem para o intendente. Mas quisesse saber dele, era só passar na porta da sacristia, se tivesse o monte ali, Zé Bilú estava no Vai Vem.
No correr do tempo, Rutinho engraçou com Lonora dos Costa. O irmão tratou do pedido e foi com Rutinho combinar data na igreja.
E aí foi senhor José Belarmino para cá, senhor José Belarmino para lá.
Hoje, dia de Nossa Senhora da Conceição, festejo maior da paróquia, Zé Bilú é o festeiro. Na procissão, Zé Bilú carrega o andor com a fita de congregado mariano no pescoço.
Mas, até hoje, se quer saber se ele está no Vai Vem é só passar de manhãzinha na porta da sacristia e ver se o monte esta lá.

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Madalena


O rosário corria pela mão fina de Madalena, era o último dia da novena e ela não sabia o que fazer. Ele lhe dissera que viria naquele dia. Ela rezava para que nunca chegasse. Os dedos puxando cada conta do terço e o medo tomando conta, medo de sair da igreja e encontrá-lo na porta.
Por que concordara com aquilo, não era do seu querer mas mesmo assim dera a palavra sem nem conhecê-lo.
Antes de se benzer e sair, pediu a Nossa Senhora da Conceição que mandasse o seu anjo de guarda para que a protegesse e desceu as escadas puxando o véu da cabeça para os ombros.
Foi alívio que sentiu até a porta da casa quando viu o cavalo preto amarrado no poste.
O corpo tremeu, era ele sentado na varanda, muito bem vestido, todo de preto, chapéu de abas e botas de cano alto. O bigode fino, e as sobrancelhas arqueadas davam a aparência de que ao sorrir seu rosto se enchia de sombras.
Estava lá, sentado junto à família, calado, esperando. Calado era o jeito dele, assim ficava.
Dali em diante, dormia na pensão e mal o dia amanhecia estava ele de volta. Ficava o dia inteiro ali, entre sentado na varanda enrolando o cigarro ou em pé, encostado no batente da porta. Palavras poucas, vez ou outra, na cozinha, um cafezinho.
Acompanhava Madalena até a porta da igreja todos os dias e ficava esperando a missa acabar na venda em frente. No caminho de volta o silêncio era o mesmo. O medo dela era grande e o arrependimento também.
Às vezes chegava a se surpreender em maus pensamentos, uma morte qualquer... picada de cobra, um tombo do cavalo; talvez, que as sombras do rosto dele o engolissem ou que o preto de suas roupas o levasse para o quinto dos infernos. Quem sabe não engasgasse com alguma palavra, já que falava tão pouco.
O dia ia chegando, ele esperando e ela se preparando. A Tia ajudava no mais, a amiga Das Dores achava ele bonito, fino. Das Dores dizia, sem graça e sem inveja, que ela ia acabar gostando.
Seria possível um dia gostar dele? Do lugar onde iria morar? Do silêncio daquele homem sombrio?
Com o passar dos dias, foi se acostumando com seu destino. Encontrava até alguma alegria em arrumar suas coisas, terminar seus bordados em sua presença calada. Começou a reparar melhor em suas feições, no jeito de lidar com o cigarro, com o cavalo. Percebia no particular de seus gestos certo carinho. Era na véspera, até sorriu.
No dia, frente ao altar, reparou ele todo. Cada passo que dava pensava no tanto que havia se avezado com ele. A amiga Das Dores tinha razão, distinguia a beleza dele naquela hora da manhã, no reflexo dos vitrais em seu semblante, ali esperando no altar. O sombrio de seu rosto ficou para trás, naquela hora parecia um anjo. Quando ele estendeu a mão para recebê-la no altar, Madalena sentiu aquele calor percorrer seu corpo e no olhar dele uma promessa de amor, em silêncio.
Na despedida, o choro foi normal e nas léguas passando, aquela mistura, a lembrança do que sentiria falta com o que imaginava ser sua vida, dali agora.
Chegaram na hora do dia de mais silêncio, ao avistar a casa toda caiada, varanda em volta, bica d’água com monjolo na porta da cozinha e, ao lado, a horta verdejando. Lembrou de Das Dores, falando que ela ia acabar gostando.
Quando viu na curva do rio o mato virgem com os pés de ipê amarelo, todos floridos, entendeu o jeito calado do marido. Era tanta beleza ali, os buritis formando, lado a lado, o caminho bem cuidado, aquele dia claro e luminoso como se enfeitado para ela.
Nas poucas palavras dele mostrou tudo e ela sentiu como se fizesse parte dali. Nas primeiras manhãs faltou apenas ir à missa, depois nem se lembrou mais.
Foi se acostumando com o jeito dele, nas intimidades, um fogo só, no gostar de andar sempre de preto, no modo de lidar com os agregados, sempre com poucas palavras.
Ela nunca viu nada de estranho naquele lugar, apenas o silêncio. Era raro um canto de passarinho, um mugido no curral, até a chuva ali caía fininho, farfalhando pouco nas folhas; trovejo só se ouvia longe.
Não estranhou nem mesmo quando, ao tirar as botas do marido, descobriu o aleijão em seus pés repartidos em dois dedos, como pés de cabra.

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João CarolinaCarolina hum, hum, hum...
Carolina hum, hum, hum...

E passava os pés no chão, ora com o direito, ora com o esquerdo, arrastando um na frente, puxando como se a sola fosse subir no outro. Com o que firmava esse movimento, dava um pulinho para frente.
Era o João Carolina, pessoa e dança.
Ele perambulava pelas ruas, juntando os meninos onde passava, quando bebia cantava e dançava.Carolina hum, hum, hum...
Carolina hum, hum, hum...

Sem beber, saía pelas ruas, falando em latim, segundo o cônego que, vez em quando, levava ele à casa paroquial para um banho.
Quando sóbrio, se irritava com a meninada e atirava pedras. E eles vinham gritando atrás dele:Carolina hum, hum, hum...
Carolina hum, hum, hum...

Chegou à cidade e se agregou a ela, ninguém sabia quem era ou de onde tinha vindo. Não falava nenhuma palavra a não ser em latim.
Ficou João Carolina por causa da dança. Doido, ninguém sabia como. Passava horas falando a mesma frase em latim. Dormia no coreto da praça ou desaparecia nos matos ao redor.
Uma vez o vi, no pasto, deitado no chão com as mãos abertas, gritando bem alto:

- Deus, me ajuda!

Tive coragem e me aproximei.

- Seu João Carolina.

Ele levantou os olhos e me olhou. Não disse uma palavra.
Carolina hum, hum, hum...
Carolina hum, hum, hum...

Não se sabe da mão de qual moleque veio a pedra. Foi bem na testa, o sangue escorreu, formando uma poça no chão. Levei imediatamente para casa, cuidei do ferimento e o deixei dormir lá. Sua noite foi um delírio só. De manhã não falou uma palavra. Foi só aquele olhar calado.
Cada dia me convencia mais, observando João Carolina na rua, de que ele não nascera daquele jeito. Havia enlouquecido no decorrer da vida.
Nascia ali uma cumplicidade demonstrada nos olhares. Mas muito estranha. Havia medo no olhar dele, havia curiosidade e um pouco de medo no meu.
Uma vez o segui pelo mato, ele tirou a roupa e, nu, chorava e gritava.

- Deus, me ajude!

Num ponto da cerca o esperei.

- Seu João Carolina, o senhor está bem?

Ele sentou no chão. Abandonando o latim e começou a falar.

- Eu era padre e me apaixonei por uma mulher casada. Fugi com ela, nos agregamos à Coluna Prestes e andamos muito, sertão afora.
Nasci aqui mesmo; só soube de tudo, já ordenado. Meu pai é daqui, foi abandonado pela minha mãe quando eu era pequeno. E ela me abandonou na rua, em Minas. Fui criado pelos padres e assim me tornei um deles.
Fui vigário em Curvelo. Lá conheci Donana, logo na primeira missa que rezei. Nas confissões a desejava muito, ouvi-la confessar seus pecados me dava prazer e sofrimento. Ela foi notando, pela minha respiração, o quanto me transfigurava naquelas horas. E a cada dia que confessava, seus pecados tinham mais detalhes, mais insinuações. Começamos a trocar também olhares, daí para as juras de amor, no confessionário, foi pouco tempo. Meu conflito com Deus, com a fé e os dogmas da igreja foi nenhum.
Nos deitamos a primeira vez. Já na segunda combinamos fugir e nos juntar à Coluna, que estava na Bahia, e o fizemos na semana, depois da festa do padroeiro, levando toda a renda e os donativos conseguidos. Nas vésperas, recebi uma encomenda do convento. Era carta de padre Anselmo, que relatava minhas origens. Mas não dava tempo de mudar o destino, procurar um pai que eu não sabia existir, levando Donana comigo. Era muito arriscado. Não tivemos problemas nenhum em nos juntar à Coluna, menos ainda em nos adaptarmos à nova vida.
Às vezes, em volta da fogueira, com as mulheres que acompanhavam a marcha, ficávamos bebendo e cantando. Um dia, abusei da bebida, Donana também. Ela começou a dançar, provocando os companheiros, que já não diferenciavam as prostitutas das nossas mulheres. No outro dia, me confessou ter gostado daquilo tudo, não era para me provocar. Deitou com o primeiro, depois daquela dança. Me relatou, passado um tempo, sem omitir detalhes e os nomes dos outros.
Na mesma noite, eu a matei, estrangulada com as próprias mãos; era dia de combate, aproveitei a confusão da batalha e cortei, no facão, a cabeça de trinta e dois companheiros. Oficialmente disseram que foi o inimigo atacando pelos flancos. Levei muitos anos para chegar aqui e descobrir que meu pai morreu faz muito tempo.

O João Carolina ficou silencioso e levantou.
Não consegui fazer nenhuma pergunta.


Me lembro da dor na nuca, da inconsciência. Mas nunca soube quem me socorreu e nunca souberam quem me cortou a língua e as duas mãos.




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São Jorge


- Soçobro de rompê essa légua no passo lento. Duas junta. Teimosia de seu Eulálio, magina querê que tocasse os animá no vagar, sem afobo, mais querê tamém que andasse ligero, cum coisa que ia adiantá muito chegá antes do armoço, sei do afobamento dele, entrante o mêis de coiê, mais sei tamém da preguiça de Damin mais Nestor em lidá com o que fosse em meio de manhã. Essa hora pr’eles é de esperá Mazinha chamá prá cumê.
- Andá em recumendo de patrão nem ataio posso fazê por dentro das terra do Sapindó. Recumendô pr’eu pará nus cubertão de mato prá descanso dos animá, nos prazo, de hora em hora. Ê lida! Envou nesse mole... lerdera. E se os boi amuntá no barranco? Mania essa de seu Eulálio tocá boi cum canga, só prá omentá o sirviço, fosse ele o boi, ia vê.
- Nem mei de caminho ainda, diacho, mormaço cansa mais nesse andá lerdo. Quando chegá, banho no poço, armoço e me deito todinho no paiol.
- Que é isso, meu boi? Serena a brabeza, vem cá, meu boi, êi, êi ...

Nessa hora, no tanger as duas juntas, amarradas uma na outra, subiram no barranco, Felício desgovernou o corpo amolecendo o equilíbrio, jogando cavalo, cavaleiro e os bois encangados na grota coberta pelo mato fechado. Ao cair, a barrigueira do arreio rebentou ficando o pé de Felício enganchado no estribo, enlaçado pelos pedaços, misturado com os galhos e cipós daquela beira. De cabeça para baixo, pendurado, tentando se erguer, Felício via a agonia dos animais, mal cabendo no buraco, sem ter por onde sair. Procurava um jeito de erguer a cabeça, já não agüentando a posição. Não tinha como cortar o estribo, a faca, com o tombo, caiu da bainha. No braço e no rosto uma ardência que mal deixava ele pensar, como que paralisado, rezava para São Jorge.

- Meu Santo cavalero, ajuda i’eu.

Nem bem acabou de invocar o santo, ouviu um barulho de mato e viu aquele homem com a espingarda na mão e o cachorro cheirando tudo ao redor.

- Precisa de ajuda?

- Sim, tira i’eu daqui que envou caíno... o sôr chega naquele pau faiz firmeza com uma mão e me dá a otra. Vou ficá no gradecido, seu moço.

Ajudado, Felício conseguiu com muita dificuldade retirar os animais da grota para seguir viagem. Agradeceu ao caçador e depois de explicar como aconteceu aquela situação pôs os animais para andar. Já na distância, agradeceu ao santo em pensamento.

- Obrigado São, Jorge.

O estranho respondeu, gritando de longe.

- De nada, seu moço.




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Perdoado Quenzim


Lá vem me atentar. Já não chega o aborrecimento de ver aquela torre ficar quase mais alta que minha cumeeira, ele, depois que chegou para dar acosto ao vaqueiro Quenzim, não sai daqui do curtume. Pensa que não vou disputar direito. Quenzim já emporcalhei com cachaça e no jeito de matar os bois. Esse tempo perco é não.
Ele que continue vindo aqui, exibindo a torre, fazendo o que quiser. Incomoda não. Pode pôr sino, cruz, mandar fazer afrescos, avisto mas não tenho que levantar a cabeça, nivelo com a altura da cumeeira, perde tempo o colega. Esse vaqueiro é um fraco, basta um gole de cachaça para desarrumar ele. O vivente já vem com a natureza dele. Adianta ir na igreja? Aprender reza nova?
Cerco ele, pego a beleza, cochicho no ouvido:

- Depois do gole, é sua...

Esse mundo é um de quem quer, de quem sabe pôr arrelia é também. O colega cerca Quenzim. Eu não fico só no de longe esperando a hora de açular no tempo dum gole para destravar o real dele. Com esse lido só quase com cachaça, é o que põe ele no fraco.
Adianta o colega ficar grudado nele? Cochichando caridade no carecer dele, aferro à-toa. Quenzim põe o olho na arroba do boi e eu assopro no ouvido dele.

– Leva um pedaço por conta da caridade do patrão, faz guizado...

No juízo dele só ponho a favor, o colega põe até perdão, quer de qualquer jeito. Aproveito o ouvido.

- Toma pinga, faz de novo...

Meu jeito é esse, descubro a fraqueza primeiro. Vou cevando o vivente com coisinhas que o colega nem percebe. Esse de agora, o Quenzim, menino ainda no alambique do Tartulfo, onde o pai trabalhava, quando foi pegar a caneca de garapa, o colega distraiu e eu assoprei:

- Prova daquela lá...

Descobri a fraqueza. Hoje, só atento com o gole, o resto vem junto na natureza dele. E o jeito dele matar os bois? Não reparou nas maldades que fui bafejando, devagar, anos e anos, daqui da cumeeira.
Agora o colega vem de novo me afrontar com o perdão de tudo? Por que não deixa Quenzim acabar de estrebuchar, sangrando nesse chifre afiado? Por que não larga mão dele? Já não chega o abodego daquela torre ficar mais alta que minha cumeeira?

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Rudiei Arrependidos


Rudiei Arrependidos evitano conferição. O sol no alto da tarde num deixava firmá as vista e no arrodeio me vi perdido. A mulada no desassussego de caminho novo, agitada, andava no ponto do disparo.
I’eu num avuliava nada não, o senso ficava só no pensá em Mundica, filha mais nova de seu Tertuliano e dona Idalina, primor de donzela, fosse nas prenda ou nas anca farta, era toda buniteza vazada nos zói noturno, mostrano só iscundição.
Quando dei fé, Toconha já tava atolada pelo meio das pata da frente e lutava prá saí do atolo.

- Êia, Ojero.

Gritei p’ro guia, parando a mulada.
Labuta de mais de dia prá tirá ela da grota e mais otro no secá da porva. Inda sem sabênça do caminho.
Subia corte, descia grota, indo pur onde o intuí apontava e era como cumulá cordão em novelo, marrando ponta de caminho em cumeço de caminho, era só disguverno, o rumo. Num achava o Veríssimo nem topava cum o Braço.
Nos contá mais de trinta légua, pelos dia passante, e nada de vê o do cunhecimento. Nem grota, nem campo, siqué um buriti, nada duma barranca de rio. E o mato ingrossano em toda ponta de caminho. As mula tudo cansada sem custumá cum essa modalidade de istrada.
Assombro de noite sem lua, medo de onça, d’eu e das mula, quando a dita urrava no em longe.
Às veiz Mundica paricia, nos lembrá, sustentano a corage.
Cunhicia tanto os caminho, num dava prá criditá tamanho ismazelo meu, nos rumo da evitação.
Tava no entremeio dos pensá quando Ojero istancô e oiô prá trais como pedisse silenço. Inrolei meu cigarro de paia nesse tempo. Ojero, num balangá de cabeça, mudô de caminho, quase no trote, até chegá na bera do Braço. Agora era rio acima até Tertuliano.
Chegamo era noite formada, descarrego e sossego na durmida. Paricia até que num levava aquela carga; medo tinha não, receio de luta era só pur Mundica, i’eu robava ela quando a jagunçada cumeçasse a chegá. Ela havia de querê.
Engano meu, no manhecê a jagunçada já tava toda lá. Firmino contô que eles pois reparo n’eu chegá, mais sabia que era a porva e num parecêro prá num ajudá no descarrego. Quando fui recebê a paga, pude vê por entre o vurto de seu Tertuliano, encostado no batente da porta, que dentro da casa só tinha jagunço, de Mundica, a irmã e dona Idalina, nem sombra.
Me dispidi e tive istrada, caminho de Entre Rios, na esperança de sabê de Mundica, sem fazê perguntação.
Já num bom prumo de caminho, no bebe água no Lajeado, me cercô uns deiz jagunço, puis atenção só num, que vi logo, era agregado dos Costa. Mais num era o comando não. O das orde cunheci logo, ficô mais à distança e foi logo pirguntano.

- Que qui o cristão deixô p’ro Tertuliano?

Minhas perna trimia, era o falado Dé Cristão.

- Incumenda de porva, seu moço. Falei cum toda firmeza que achei.

- Acumpanha nóis, ixigiu Dé Cristão.

I’eu dentro dus pensamento, no meio da guerra e sem nem sabê o purquê da rilia. Mais perguntá, perguntava não.
Na chegada, seu Germano Costa na porta da casa cum as perna afastada e as mão na cintura, jeito de gente infezada.

- Esse um que troxe a porva, pode sangrá ele? Disse Dé Cristão.

Num abri a boca, esperei seu Germano falá.

- Quanto de pólvora o senhor trouxe e como passou Arrependidos?

- Seu Germano, vim cum a mulada toda carregada e, no Arrependidos, arrudiei, como fiz p’ro sinhô quando careceu. Num puis sabença na rilia de ninguém, labuto só cum o ofício, sem carecê perguntação.

Respondi juntado toda corage.

- Deixa ele ir. Falou seu Germano

Só virei a rédia da mula passando rente a jagunçada, juntei a tropa e ganhei istrada. A parada foi só na venda do Manco, cum o abrando do susto tirado no sigundo gole.
A nutiça da briga já varava mundo no contá do povo e parte pur falação do Manco que, mal cheguei na venda, já foi logo contando o mutivo da disavença.

- O povo pensa que a rilia é pur causa da Aguada do Buriti, mais num é não, é coisa mais antiga. A Aguada do Buriti foi o intorno da réiva dum cum otro. Isso cumeçô purque Germano quiria casá cum dona Idalina e o pai dela num pois gosto. Tertuliano cabou casano cum ela; Germano nunca conformô e cumeçô a riliação. Primero, foi pur causa dum boi dele que pareceu no manguero de Tertuliano, Germano deu parecença de robo. Depois na festa de Nossa Senhora da Conceição, os dois era festero, rumação do padre Crispino, que Deus o tenha, no criditá que acabava cum a disavença. Que nada, os dois brigava até dentro da igreja, o padre ficava doido. Quando Mundica imoçô, abrandô a con-fusão; diz que Germano, já viúvo, punha muito gosto nela; no passá do tempo até agrado os vizinho trocô.

Meu sangue nessa hora freveu, mais num dei demonstra. O Manco recomeçô.

- Ele pois o olho em Mundica e dona Idalina, cada dia, punha mais reparo nos oiá dele. Um dia falou cum Tertuliano e ele brabo perguntô à Mundica se era do gosto dela, a agradação daquele véio. Mundica assustada disse que não e ficou desacorçoada num canto da varanda, medo do pai casá ela. Antes que Tertuliano pudesse ir tirá satisfação, Germano apareceu e pediu Mundica em casamento. Foi muito desassussego p’ros dois, mas na iducação, num teve cunsintimento e Germano saiu de lá nos pur fora em paiz mas, no de dentro, a réiva cunsumia.
Alívio meu.

- Desse dia em diante, num houve sussego. O negá da mão de Mundica foi agravo difinitivo, até cerca teve que fazê na Aguada do Buriti que agora é chamada de Buriti Cercado. Nunca ninguém viu tanta brigaiada.
Agora, dum mais de mêis prá cá, é essa ajuntação de jagunço. Tertuliano já mandô até dona Idalina mais as mininas cá p’ra rua, na casa de Anacleto.

Era só o que carecia sabê.
Fui pôr trato nas incumenda de seu Anacleto e dona Fia e lá, entre o proseio e os apontamento, pude vê Mundica, mais sinal num fiz. Quando o coração intende, o resto do corpo acumpanha. Desse dia em diante, passei a ficá pela madrugada na frente da casa, fumano um cigarro de paia atráis do otro p’ro lume apontá p’ra Mundica minha isperação. No tercero dia, um sinal de lamparina. Fui lá e na janela cumbinamo o dia.
E nesse, robei a moça.




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Zelé


Açodando o passo iam pela madrugada, a chuva fina, de novo, começava a cair encharcando a capa estendida sobre a cabeça dos dois. Ela toda encolhida, com frio, esforçava andar mais depressa e puxava o corpo de Gentil para esquentar o seu.
Passando na porta da igreja, Zelé vinha apagando as luzes dos postes. O claro do dia entrava no Arraial e a chuva engrossando, sobrepunha o fusco, embaralhando o que se enxergava.
Zelé viu aquele vulto estranho passando do outro lado da rua, não distinguiu quem, hora de quase missa o certo era eles estarem indo para igreja, não como saísse dela. Coisa de noite feia, pensou, mas logo esqueceu, continuando a lida.
Na noite seguinte, clara e estrelada, madrugada fria, Zelé lembrou do vulto quando vestia a capa. Foi subindo a rua pensando fosse a parteira Júlia indo aparar alguém ou seu Arcílio da farmácia acudindo algum doente. Nesse pensamento, foi descendo a rua. No terceiro candeeiro, concluiu não ser possível pois nenhum deles morava na direção de onde o vulto vinha e nem para onde ele ia. Um dia, se lembrasse ia perguntar.
Passou mais de mês, até já tinha esquecido daquele assunto, ao apagar o último poste atrás da igreja, viu saindo do cemitério um vulto, mais magro, quase certo o mesmo daquela noite.
Zelé, homem sozinho no mundo, já tinha visto tantas coisas no escuro da noite, parecendo ser o que não era, que já nem ficava assustado. Coragem não faltava, lidava com tudo sem assombro, no mais real.
Sem reconhecer quem fosse, mesmo tendo visto ele antes de apagar o último candeeiro, Zelé acabou o serviço naquele dia e, como quem não quer nada, foi visitar seu Zé Coveiro na intenção de descobrir alguma coisa. Conversaram a manhã toda mas nada na conversa dele deu pista de quem pudesse ser. Naqueles mais de seis meses, o único enterro foi o da moça Aurora, filha do seu João Bas-tos, que morreu de tuberculose. Enterro dos mais tristes, o marido, casado de novo, dava dó. Dizia Zé Coveiro.
Ficou Zelé, dali em diante, por quase o mês vigiando o cemitério, apagava o último candeeiro no fim da rua e se escondia na sombra esperando ver quem entrasse ou saísse. Nada aconteceu naquele tempo, Zelé foi esquecendo o assunto. Uma tardinha ele viu sair do cemitério dona Celeste, mulher de seu João Bastos, e naquela madrugada resolveu esperar mais uma vez.
O céu choveu todo naquela noite, estiando perto do romper do dia, para sua surpresa não era um vulto e sim dois, para seu espanto era Gentil e a moça Aurora entrando no cemitério, o susto foi grande mas Zelé não se revelou escondido.
Hoje, ele vigia a hora de Gentil buscá-la e vai na frente apagando os candeeiros, das ruas onde os dois passam, para ninguém descobrir aquele segredo das madrugadas do Arraial de Nossa Senhora da Conceição.




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Rua de Cima


O cavalo de judeu pousou no balcão da venda. Dé Cristão bateu a mão em cima, arrancou a cabeça, jogou fora e comeu o resto, jogando a pinga por cima. Ninguém nem reparou. Todos já estavam acostumados ver ele sentar na venda, beber e comer tudo que andava, voava, nadava ou rastejava. Era nojento, mas era o costume dele.
De cristão só o nome. O resto não tinha nada. Era um sujeito que, diziam, aprendera com a mãe, dona Filinta, a ter governo só pela paga. A viúva, não se sabia de quem, morava na última casa da rua. Um lugar que dava medo em qualquer um.
Dele, se dizia de tudo. Que nunca dormia, que comia de um tudo, mas só cru. Que tinha parte com o diabo e não dava conta de contar quantos já tinha despachado para o inferno ou para o céu; vai lá saber o merecimento de cada um. Não escolhia ferramenta para o serviço, isso era só na hora. Única coisa que aceitava combinação era na paga, o jeito de fazer o serviço, esse não.
Quando perguntado pelo oficio, respondia.

- Ninhum.

Calado demais, rir ninguém ainda vira. Quando estava à toa, era na venda do Manco, bebendo cachaça. Chegava, batia no balcão.

- Como vai, seu Dé?

- ...

Pegava a garrafa no balcão e dali não saía prosa nenhuma.
Dos poderosos, não havia quem não tivesse tido Dé Cristão a seu serviço por algum tempo, e era isso que garantia ele andar por onde quisesse. Até o delegado chamava ele de seu Dé.
Fora do ofício, não fazia mal a ninguém. Era até respeitador: o medo que tinham dele ajudava muito, apesar de saberem que ele não tinha luta sua, só labutava na dos outros.
Em qualquer lugar que fosse, não ia só. A uns cinqüenta metros acima de sua cabeça, sempre o urubu-rei, voando em círculos. Se parado, ele pousava no perto, vez ou outra no ombro de Dé. A noite, na casa, diziam que ele dormia empoleirado na guarda da cama. Mas quem conversava com o urubu-rei era a mãe. Ele era os olhos dela.
Quando em serviço de passamento, tocaia ou coisa carecida de despiste, o bicho sumia; mas não sumia não, voava muito alto para ninguém ver. Na morte semeada, chegava logo. Bicava a melhor parte e seguia no depressa do acoitamento com Dé. Quando era serviço de guarnição, com companheiros, tomava a dianteira ou a traseira para dar os avisos de que carecessem.
Mês de maio, Dé Cristão voltando da empreita, tendo que margear o Corumbá, no rumo contrário do rumo para misturar rastro. Serviço feito com gente de família grande e importante, carecia cuidado melhor em acoitar nos caminhos.
Urubu-rei deu aviso; era a tropa do Baldino seguindo estrada com uma moça. Entrou no mato, se escondendo. Baldino parou para pouso. Dé Cristão ladeou subindo no corte do morro até varar doutro lado, no emparelho do caminho.
Chegou madrugada minguando no dia. Esperou o Manco abrir a venda, bebeu sua cachaça até o meio da manhã. E foi para casa.
À medida que ia subindo a Rua de Cima, começou a notar os urubus nas taquaras das cercas, nos telhados, nas mangueiras dos quintais. Pôs atenção, não viu o urubu-rei. Voltou à venda e não achou o bicho. Desassossegou, foi no trote rua acima. Ao se aproximar da casa, eram mais urubus assentados nas cercas, nas casas e nos lugares. Quando deu na vista a casa da mãe, o telhado estava preto, a cerca, o terreiro também. Nunca vira tanto urubu. E o urubu-rei voava em círculos, baixo, soltando um grito estridente. Dé Cristão chegou no galope e apeou correndo antes do cavalo parar. Os urubus assentados nem se mexeram. Dé entrou pela porta da casa gritando:

- Mãe...

O corpo estava estendido no rabo do fogão; fogo ali não havia há dias, o corpo já exalava cheiro. Dentro da casa, nenhum urubu, a não ser no batente das janelas abertas. Dé Cristão enterrou a mãe ali mesmo no quintal. Quando acabou, nenhum urubu.
Antes de entrar pela porta da cozinha, ainda com a enxada na mão, quatro tiros acertaram seu peito.
E o urubu-rei soltou um grito estridente ao longe.





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Antonho da Fita


Que dava por fora dos morros era só algodão, labuta de Tertuliano mais Idalina, vencendo no tempo o aperreio da idade, o desgosto de Mundica e criando Lilica no sem juízo.

- Se é Deus que serve, i’eu tô sirvido, dizia Tertuliano.

Às vezes achava ridiqueza no gostar de Lilica, era a mais velha, vivia nos bordados com a mãe. Era moça esquisita. Perto das visitas ficava olhando, pondo reparo demais. Buscava os bordados para mostrar, as pontas encorpadas com as fitas nas cores. E ficava no tempo passando as mãos. Cantando.
Traiz o cavalo que infeito a sela
Envou na garupa, sou moça donzela
Fita vermeia é cor do pecado
Quero dimais é vivê do seu lado


Parecia que nada fazia agrado a ela, a não ser os bordados. Bastava um falar que ia na rua buscar os do carecer, que Lilica pedia para trazer uma fita. Quando ia junto ficava empatando tempo na venda por conta das fitas.
E Deus serviu, para alegria de Tertuliano e Idalina. Lilica foi pedida em casamento por Antonho, empregado na venda do Manco. Nessa hora, ficaram sabendo o porquê da demora, quando ela ia na venda, já era a lisonja de Antonho.
O casamento se deu no mês de maio, era do querer dela. Foi um festão.
Agregado na família de Lilica, Antonho ganhou do sogro o de morar, um cavalo e à-meia na lavoura de algodão.
Na primeira noite, meio da madrugada, Lilica acordou.

- Antonho, acende a lamparina, dexa i’eu ti vê, ocê é bunito dimais, Antonho, parece uma fita. Ocê é bunito dimais, Antonho.

Primeira vez que Antonho foi na rua...

- Antonho, traiz uma fita verde pr’eu fazê um bordado.

O de comer ele não achava pronto, mas os bordados, cheios de fitas de tudo que é cor, era garantido.
Isso se repetiu por toda a vida. Ficou sendo o Antonho da Fita. Do seu desagrado, mas foi tolerando os dias, os meses, os anos. Era fita amarrando o pote, nos pé da cama, em todo lugar da casa, até no chapéu dele.
E de madrugada:

- Antonho, acende a lamparina, dexa eu marrá uma fita no seu pé, ocê é bunito dimais, Antonho.

Num falhava um dia.

- Antonho, traiz um agrado de fita prá mim.

Antonho da Fita foi se conformando.

- Antonho, acende a lamparina, dexa i’eu marrá uma fita marela nocê. Ocê é bunito dimais, Antonho.

Acordava com fitas amarradas no corpo todo. Cada dia que passava, Lilica ficava pior.
No entremeio de maio do ano, lavoura no prumo de colher, Lilica passava os dias junto com Antonho, colhendo o algodão, ia colhendo, fazendo uns chumaços e amarrando com as fitas. Não tinha renda um serviço daquele.
Um dia, Antonho desacorçoou e, na desculpa de ajudar na colheita do sogro, dormiram lá.

- Antonho, acende a lamparina, dexa i’eu ti vê, ocê é bunito dimais, Antonho, parece uma fita. Ocê é bunito dimais, Antonho.

Nesse dia, deixou o cavalo já arreado, fez madrugada, passou a mão na lata de paçoca e numa cabaça d’água. E ganhou o mundo.
Marcou o rumo do Cavalheiro e só desmontou na boca-da-noite. Quando desarreou o cavalo, achou amarrado nos baixeiros os quatro laços de fita, uma de cada cor.





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Pai rei

Como fosse o próprio, entestou, ferveu e veio, queria porque queria me enfrentar de novo, ali no meio da rua, na frente de todos; de certo na demonstração de valentia, coisa que não tinha. Era jeito de traiçoeiro, de capanga restado, mais sem serventia. Dormia de favor na casa velha do Delfonso, se dizia parente de fulano, do sicrano, que era filho de pai-rei, sabia dos modos e de todas as profissões; invocasse o pai não sobrava nada em volta, secava tudo. Que eu fosse embora antes que tardasse ali, esticado no chão com a alma apensa nos profundos. Enquanto falava ia batendo as mãos nos bolsos como se procurasse alguma coisa.
Me sentia na vergonha, ali no meio da rua em briga de mão. Ele mal parando em pé de tão bêbado, mas era assim, não podia me ver em lugar nenhum que vinha, bêbado ou não. Todas as vezes era aquela provocação, quando levava uns pescoções, xingava de longe, esbravejava. O motivo dele não sabia, uma ojeriza gratuita, nascida do nada.
Aquela situação já durava tempo, ficava medindo lugar de ir para não encontrá-lo, tentando evitar. Mas não adiantava muito porque onde me visse, lá vinha, batendo as mãos nos bolsos provocando, querendo briga, se dizendo filho da brabeza, do pior que havia, não adiantava esconder que ele achava, seu pai-rei guiava na sova que ia dar, que era protegido no natural e no urdido.
A idéia surgiu quando vi na casa do Linoro uma carcaça de boi, no quintal, secando ao sol. E ele, prontamente, me cedeu a cabeça e ajudou nos preparativos. Passamos quase uma semana trabalhando para achar a indumentária, o cavalo, o arreio, tudo preto, como foi pintada a cabeça de boi preparada para vestir a minha.
Uns metros antes da casa velha do Delfonso, no Beco da Passagem, fiquei esperando o Birobo naquela noite. O Linoro, na outra esquina, deu o sinal quando ele apareceu na rua. Coloquei a cabeça de boi, abri a capa de chuva sobre as ancas do cavalo e apontei na esquina. Quando ele me viu, parou no susto. Nem dei tempo, com a voz empostada inquiri.

- Num toma bênça do pai-rei, Birobo?

Ele quase já correndo, gritou.

- A bênça, pai-rei.

E correu, rua abaixo, até que cerquei no galope; com aquela cabeça de boi me machucando o rosto e o pescoço, perguntei.

- Tá fugino do seu pai, travesso?

Birobo tentava pôr desconfio, ali parado na minha frente, misto de assusto e espanto, abobado, sem conseguir falar, me ouviu dizer que filho de pai-rei não podia ficar arreliando com ninguém para não dar parecença de quem era e proteger os profundos, que ele tomasse tento. Num volteio saí a galope rua acima.
Muitos dias se passaram sem que Birobo aparecesse. Um dia o encontrei sóbrio, mais arrumado que sempre, meio sem graça aproximou-se de mim, misto de riso e medo no rosto, se curvando todo, falou baixinho como para ninguém ouvir.

- A bênça, pai-rei...




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Buriti Cercado

Amadeu cutucava a fogueira com o tição avivando o fogo naquela noite fria. O pensamento ia longe, os companheiros esperavam calados, como se escutassem, ele lembrar o dia. Pedaço de cada um ali, restado, presente, menos de Valdo, o mais moço, agregado a eles na passagem pelo Corumbá.
Neles as marcas no rosto delatavam, com ensimesmar de Amadeu, que estavam voltando para o mesmo lugar, no mesmo pensamento.
Tavinho tossia disfarçando a tristeza, Jujim tecia o laço apertando mais cada trançada, Rubilão aparentava, naquele silêncio, atento no lembrar. Com apreço no coração, eles olhavam fixo a lenha queimando, naquela noite escura e fria.
Quem primeiro abriu a boca foi Valdo perguntando a Jujim.

- Quanto vale?

- Faço laço prá vendê não, só p’ro orgulho de uso. Compra lá na venda do Manco. Respondeu Jujim meio ríspido, não agradando de Valdo tirar ele do lembrar. Mas era seu jeito, abruta-lhado de tão sincero.

Tavinho, tomando as dores do companheiro, disse:

- Num fala assim cum ele não, Jujim, desmerece o Valdo não. Ele pois agrado no laço, divia gradecê, cobiçô um trem qui ocê feiz.

Tavinho era assim com todo mundo, não agüentava nada errado em volta dele, gostava de tudo no justo.
Rubilão, calado como era, com o olhar mais forte que qualquer palavra aprovou. Seu silêncio seguiu até o momento que Amadeu jogou o tição na fogueira e se levantou, naquele rompante só seu.

- Vamo vortá p’ro Buriti Cercado, num semo home de fugi no mundo. Ponho assunto cum eles, cum aquele Linalvo inté tropa de guverno, preciso for. Ocê, Valdo, segue em rumo, é briga nossa, seu aperreio é outro, vai na sorte...

Valdo sem entender nada do que ouvia e sem dizer uma palavra, montou sem hesitar, tomando o mesmo rumo dos companheiros. Rubilão olhou consentindo.
Na Vila, para assombro do Manco, tomaram uns goles e anoiteceram no Buriti Cercado. Nas doze léguas vencidas, quase a trote, nenhuma palavra, nem Valdo perguntou nada, observava calado.

- Melhor esperá manhecê. Propôs Jujim.

Ninguém respondeu e continuaram no trote até a casa às escuras. No latir dos cachorros, dona Dalva levantou com a lamparina na mão. A porta já estava aberta quando Amadeu apeou. A primeira reação foi de susto ao vê-lo. Chorando muito, exclamando:

- Fiquei só no mundo, meu filho! O Melques brigou com o Linalvo em luta corporal, com facas e punhais, um sangrou o outro no meio do pasto. Linalvo morreu na hora e o Melques veio arrastando, esvaindo em sangue e em meus braços, deu o último suspiro, falando seu nome.

Ainda sem desmontar, Valdo perguntou a Jujim:

- É a mãe dele?

- Madrasta, respondeu Tavinho.

E foi no paiol onde Valdo ouviu toda a história da boca de Jujim.

- Quando seu Melques ficou viúvo, nóis trabaiava aqui, lidava cum boiada mais Amadeu e o Mané Bem. Dona Dalva era madrasta do Linalvo, viúva tamém, vizinha e dona de mais terra e menos gado que seu Melques. No casamento dos dois, cum o acordo de Linalvo e o Amadeu, num dividiro nem terra nem gado com os filho, virô uma coisa só.
Mané Bem era nos muito melhor vaquero, afamado no laço, quase regulano idade cum seu Melques, tomava de conta de nóis e do gado. Nóis até pidia a bênção p’ro Mané Bem, escutava um tudo dele.
Um dia, nasceu arrelia entre Mané Bem e Linalvo por conta duma bobage que ninguém nem alembra qual e aí virô aquele aperreio. Mané Bem dizia que ele era cria do demo, que num prestava em nada.
Um dia, meio no à força, Linalvo buliu com a filha dele quase desonrano a moça. Mané Bem, na frente de todo mundo deu surra de vara nele. Linalvo jurou morte. Mês depois Mané Bem pareceu morto de bala numa grota no pasto do Buriti Cercado, ele num tinha inimigo ninhum, fora o anteado de dona Dalva.
Amadeu quis satisfação com pulícia e tudo. O pai num deixô. Pediu sua parte nas terra, o pai num deu. Aí nóis resorveu segui ele sem nada, ino p’ro norte mode honrá Mané Bem.

- Jujim! E o Amadeu cumbina cum a madrasta?

- Ela foi boa prá ele, ajudô esfriá cabeça quando em ia matá o Linalvo.

Amadeu e a madrasta passaram quase a noite toda conversando, ela lhe contou a tristeza do pai quando ele se foi e das brigas dele com Linalvo desde então. O pai não se conformava, queria mandar gente atrás, queria paz igual no tempo de Mané Bem. Contou da família dele. A filha caiu na vida. A mulher tinha ido viver com o irmão em Minas.
Amanheceu o dia, aquela tristeza entre os dois. Os companheiros, no curral, tomando sol, enrolando seus cigarros e com os cavalos arreados, esperavam Amadeu.

- Ele vai querer ficar, Rubilão? Perguntou Jujim.

- Vai não, mas abre questão de deixá nóis prá trais, respondeu.

Dona Dalva não se conformava. Amadeu firmava opinião de ir embora e deixar o passado em paz. Gostava muito dela, considerava, mas ia. No desamparo deixava não. Jujim, Rubilão, Tavinho mais Valdo davam conta da lida. Rubilão tinha o comando de conhecer mais.
Amadeu fez madrugada não despedindo de ninguém, venceu a estrada até alcançar o Corumbá sem nem olhar para trás. No atiçar o fogo na noite fria, já pensando só nos em frente, escutou o barulho de alguém chegando. Era Valdo que foi desmontando e dizendo:

- Sigo daqui com o amigo, faço parte do prá trais não...

Seguiram vida a fora, fazendo um serviço aqui; outro acolá, sem parar em lugar nenhum. Sempre longe do Buriti Cercado mas sem seguir para o norte como era de plano fazer.
Valdo respeitava o em si de Amadeu e gostava do jeito dele cada dia mais. A amizade, feita no mais calado, só foi aumentando. Amadeu apreciava naquela malungagem o simples de Valdo.
Às vezes, Valdo arriscava conversar um pouco mais, contar casos do Roncador, de Maria Bibica que gostou dele e propôs caso de rabicho. Contava as doidices dela quando eles se deitavam. Dizia.

- Um dia, em perto, nóis passa lá e o amigo Amadeu vai ficá gostano.

Amadeu ria como consentisse. E assim, um dia, a distância era tão pouca, o serviço feito em boa paga, encostaram lá.
De fato, Maria Bibica tinha um rabicho por Valdo. Era risonha nos olhos, morena, de ancas fartas mas um jeito de ainda menina. E gostava do Valdo, delatado. Amadeu ria com o feliz do amigo indo para o quarto.
O semblante anuviou quando a viu na cozinha despenando o frango do almoço e perguntou, sem querer acreditar.

- Zumira?

- Seu Amadeu! Espantada e demonstrando muita vergonha, disse.

- Como vai o sinhor?

Ali na cozinha ficaram conversando enquanto Zumira preparava o almoço. Amadeu relatou tudo o que aconteceu no Buriti Cercado. Conversa triste de ter, mais triste, ainda, quando Zumira falou como caiu na vida, contou de Linalvo derrubando ela à força, logo depois de ele fazer rumo com os meninos. Amadeu até sorriu quando ela se referiu a Jujim, Rubilão e Tavinho como meninos. Zumira contou que Linalvo fez ela deitar com um vaqueiro novo que chegou lá e que os dois tomavam ela quando queriam. Desonrada já estava, então que ganhasse dinheiro e pudesse escolher com quem deitar. Nessa intenção, foi parar ali no Roncador na bondade de Maria Bibica, agora sua irmã.

- E minha mãe? Sinhor sabe dela?

- Sei, foi morá em Minas com seu tio.

- Coitada da mãe, sofreu tanto a morte do pai, padeceu. E começou a chorar.

Amadeu a abraçou lembrando seu Mané Bem, seu mais que tio, lembrando seu pai, arrependido de não ter ficado com ele, de dona Dalva, justa no propor passar no papel tudo para ele e, apenas, viver vivendo das lembranças ali junto. Lembrou dos amigos ficando na lida, consentindo apartar. Da amizade de Valdo.
Quando Valdo e Maria Bibica entraram na cozinha viram os dois no meio da tristeza. Valdo enxergou o mesmo momento, igual de Amadeu, Jujim, Rubilão e Tavinho na beira do Corumbá.

- O que aconteceu aqui, Zumira?

Antes de ela responder, Valdo percebeu que Zumira era a filha de Mané Bem, fez sinal para Maria Bibica e saíram da cozinha. Valdo contou toda a história dos dois, a casa encheu de silêncio. Amadeu não saía do rabo do fogão, cutucando com o tição o borralho. Valdo e Maria Bibica apartados noutro cômodo respeitavam a hora.

- E isso é vida, Zumira?

- A sua é, seu Amadeu?

- É não Zumira, longe do Buriti Cercado, de Tavinho, Jujim e Rubilão, isso é longe de sê vida. Sobrô só Valdo prá tê bem querença.

- Queria essa vida não seu Amadeu, queria apartar da mãe não. Queria casá, em igreja e tudo, com moço bom igual o sinhor, sabedô dos direito. Fazê famia grande, aprendê a custurá em máquina. Prá mim ficou Maria Bibica.

Enquanto ela falava, Amadeu foi prestando atenção na mulher que se transformara Zumira, olhou pela primeira vez com os olhos de homem aquela que restou na lembrança apenas menina magra, que vivia no curral esperando o balde de apojo para a mãe fazer queijo e sentiu desejo. Ela desde que o vira sentira a mesma coisa. Demonstravam os dois agora em olhares e naquela noite, fugindo de suas histórias, nos braços um do outro.
Quando amanheceu, Amadeu chamou Valdo numa conversa séria, queria levar Zumira para casamento, buscar a mãe dela em Minas, voltar para o Buriti Cercado e retomar sua vida. Queria tocar a criação de gado com a madrasta, Rubilão, Jujim e Tavinho, e queria ele junto para quietar no Buriti Cercado. Se fosse do gosto que levasse Maria Bibica.

Na porta da casa todos esperavam.
Amanhecia quando Jujim avistou vindo pela estrada do Lajeado e deu galope para avisar.
Rubilão já quase sem enxergar, Tavinho sustentando sua velhice e a de dona Dalva, Amadeu, Zumira e Maria Bibica num riso grande esperavam seus filhos e netos chegarem do Entre Rios.
Jujim desceu do cavalo e rodeou a casa até o pequeno cemitério, nos fundos. Na beira do túmulo de Valdo, orgulhoso como tecendo um laço, falou:

- Tá vendo cumpadre, envai tempo que o diabo num põe cria aqui no Buriti Cercado.




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Cavalo de guia


Acha que tem dó no mundo, pois não tem; ninguém tem dó nem do cavalo nem do cavaleiro.
Pensa que eu não penso que é só labuta? Que sou ensinado porque venho do pasto sozinho, engano. Tenho é dó e nesse costume, qualquer dia vão me soltar no pastinho de arreio e tudo. Acho que eles deixam ele dormir de roupa. Consideração pouca tem esse povo dele mas... o de comer quem traz?
Deixaram de novo ele deitado no banco. Vem pôr esse arreio logo, menino. Enquanto não enfio a cara na janela da cozinha, dona Socorro não esperta. Qualquer dia vou dar é um coice na porta.
Chegou o arreio, depressa menino, cedo é a hora melhor. Rimmm... Minha boca, seu moleque desgraçado.
Isso é todo dia a mesma coisa, subir ele na sela, e a má vontade do menino em nos levar até o começo da rua. Era trabalho nenhum. Depois, era eu que fazia todo o caminho, debaixo do sol quente, parava em todas as casas, por conta da caridade.
Quando o menino ia junto, era mais fácil. As pessoas se assustavam, menos com o Divino, coitado, magro demais, todo torto e paralisado de um lado, a mão esquerda prejudicada, parecia mão de menino pequeno. A perna esquerda, de tanto sentar para um lado só da sela, murchou. Mas o que mais assustava as pessoas era o balançar dos olhos de um lado para o outro, muito rápido, juntado com o tremor generalizado do corpo, a baba e o puxar do ombro esquerdo para cima.
Aquela comichão no corpo dele começava de baixo para cima e sacudia até o meu pêlo. Era como se o tremor fizesse parte do respirar dele.
Tinha dia que a doença atacava mais, ele se desgovernava e caía da sela. O povo passava mas não socorria, tirando Da Luz, essa sim, se via, corria e punha ele de novo na sela. Sempre comentando, como se Divino entendesse:

- Por que seu povo não te trata direito? Seu menino devia estar junto. Onde já se viu. Nem banho tão te dando.

Essa era criatura boa. Do povo da Vila, a única que não fingia não ver. Qual fosse o dia, o ajutório dela vinha para dentro do saco.
Sina dele, assustar; a minha, tolerar o sol quente o dia inteiro. Do peso dele reclamava não, era coisa pouca. Mas ficar na porta das casas esperando as pessoas reparar para pôr um ajutório dentro dos sacos amarrados na sela, isso era penoso. Mas enfiar a cabeça na janela como fazia com dona Socorro, assustava. Já tentei antes e uma vez levei um balde d’água na cara.
Não que tivesse escolha, mas esse serviço não prestava. Às vezes, parado na porta duma casa, via passar os outros cavalos e os invejava. Aquilo é que era vida, não essa de carregar Divino pedindo esmola pela Rua de Cima inteira e, depois pela Rua de Baixo, todos os anos, nessa mesma lida.
Apeava ele direto no banco e tirada a sela, me soltava no pasto com aquele tapinha na bunda que me enfurecia tanto. Diversas vezes tentei acertar o coice, mais aquele menino só tinha o de danado.
Da beira da cerca via o jeito que tratavam ele na hora de esvaziar os sacos e trocar aqueles pelos limpos. Único asseio daquela gente. A mulher dizia que os sacos tinham que estar limpos para ninguém ter receio de pegar neles para pôr as esmolas. Mas Divino, para esse tinha que faltar asseio e despertar dó. Ainda reclamavam: “só deu isso?”
Já tinha visto muito o jeito de eles dar banho. Banho de acento aquilo lá, não era não. Jogavam dentro da bacia e deixavam horas misturando lá o tremor do frio com o tremor do sestro dele.
Pensa que eu não penso, era só o que eu fazia. Ver todo dia aquela judiação e a cada dia Divino mais velho e pior da doença, e eles falavam que era sestro. E, cada dia, o trato piorava. O menino crescia e ia ficando pior.
Um dia, notei que ele estava balançado mais que o normal, seus olhos indo na intenção de enxergar o lado esquerdo e o direito do horizonte, ziguezagueando por essa linha, parecia querer ver os dois lados ao mesmo tempo. Alarmei e fui direto para porta da casa de Da Luz, onde comecei a relinchar o mais alto que podia. O socorro veio, mas quando ela chegou no portão e pôs a mão na tramela, o corpo despencou do arreio e Divino já caiu no chão, morto.
Passei mais de mês me escondendo do menino no pastinho, e procurando jeito de tirar aquela sensação de tremor do meu pêlo, mas mal o sol nascia a comichão começava e ia até a noitinha. Não escapei de nenhum, o menino me achou e o tremor ficou agarrado em mim, marcando a sina.
Dona Socorro arremedava. No começo mal, mas com o tempo e ajudada pelo meu próprio tremido, foi se acostumando e fingia nos mínimos detalhes a doença do marido. O povo generoso dizia que a coitada tinha pegado a doença dele.
O costume de vir do pasto sozinho, mantive. Mas o resto mudou, dona Socorro começou a afinar, atrofiar e a babar como Divino. O menino continuou a me puxar pelo cabresto até o começo da Rua de Cima. Mas, da feita que entrávamos na rua, quem ditava as regras era eu.
No começo ela sofreu tanto que chegou a trocar de cavalo por uns dias. Mas não deu certo, o colega não era acostumado, não tremia como eu. O que não ajudava nada o fingimento dela.
Dona Socorro pena até hoje, quando fico tempo demais nas portas da caridade, debaixo de sol quente. Não pode pôr comando na frente dos outros, nem quando chegamos em casa. Se me judia, como no começo, me escondo no pasto e o de comer tem que esperar o menino me achar.
Não ponho governo nela, nem deixo ela pôr em mim. No menino já acertei muitos coices por conta daqueles tapas na bunda.
Na porta da casa de Da Luz, com ela nunca parei. O saco pendurado no arreio volta sempre mais minguado que nos tempos de Divino.
Foi assim que tirei proveito da minha sina. Porque cavalo também pensa. Ora se pensa.




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Zarias



Zarias era tocador de viola, dos mais afamados chapada afora. Não tinha um arrasta-pé que não era, ele e seus companheiros, chamado para tocar. A catira era o que mais dava prazer a Zarias.
Junto com Nacleto, Clóvis e Zé Dado, formavam o quarteto de sanfona, viola, caixa e violão mais apreciado, fosse no toque das valsas, mazurcas ou nos rastapés, fosse nos cateretês, maxixes, xaxados ou xotes.
Tocavam em todo o tipo de festa e diz que, uma vez até num enterro, por encomenda do viúvo. E na hora não sabiam o que tocar, foram perguntar ao vigário e quase foram excomungados.
Nesse dia foi só valsas.
Os quatro cruzavam aquele sertão mês a mês, ano todo. Três bons cavalos, com arreata no apuro; um carro de uma junta só, que levava os instrumentos e a tralha de cada um; o rancho e a canastrinha do dinheiro. Essa, vigiada dia e noite. Mesmo quando estavam tocando, ela sempre ficava aos pés de Nacleto, seu vigia oficial.
Zé Dado era jogador inveterado. Uma vez, foi surpreendido junto com um vaqueiro; na frente de cada um, um montinho de açúcar, e eles esperando para ver em qual deles o mosquito ia pou-sar primeiro.
Clóvis não podia ver rabo-de-saia. Como metade do ano as funções eram nos cabarés, ele se esbaldava; espalhava promessas de agrado, que nunca cumpria, para toda mulher que enrabichasse com ele.
Zarias, o mais afamado, em qualquer lugar que chegasse para um divertimento, ficava horas no centro da roda sempre tocando sua violinha.
E era bonito vê-lo tocar. Diziam até que ele dormia junto com ela.
Mas dizem que o certo é cheio dos poréns.
E o certo é que fazia sete anos que eles não punham os pés em Urutaí. Todos os figurões do lugar, gente mais simples, o padre e até dona Dirce, esta dona de casa de mulher, já haviam chamado os músicos. Zarias sempre arrumava uma desculpa e nunca aparecia. Todas as localidades e fazendas da chapada, de menos Urutaí, tinham seu comparecimento.
Perguntado, Zarias enfezava e perdia todo o cavalheirismo que lhe era peculiar. Não respondia. Perguntados, Nacleto, Clóvis e Zé Dado, tinham as mais diversas reações. Nacleto ficava sério e desconversava. Os outros dois davam uma risadinha e corriam do assunto.
Nesse tempo, eu era menino e me lembro dessa observação, feita na venda do Manco, pelo meu avô.
Hoje, passados mais de vinte anos, numa conversa com meu pai sobre aqueles tempos e aquelas pessoas, e principalmente sobre o músico, ele me contou que, até morrer, Zarias, sempre inseparável de sua viola, nunca voltou a Urutaí. Morreu de repente, longe da família, quando tocava, sentado no tamborete na varanda da pensão de sua comadre Quirina.
Aquilo, passado tanto tempo, não me saía da cabeça. Intrigava também muito meu pai e, naquela conversa, ali na varanda da Forquilha, esperando dona Flora que ia pegar a jardineira para Urutaí, tentávamos desvendar o mistério quando, na surpresa, dona Flora, ouvindo um fiapo da nossa conversa, contou depois, para minha mãe, o motivo de Zarias nunca ter voltado a Urutaí.
Na manhã do outro dia, meu pai acordou rindo todo.

- Descobri o mistério. Você tinha uns três anos, foi no casamento de sua madrinha Lilica. Uma festança, tinha gente até de Minas, coisa de muita cerimônia.
Zarias, ainda pouco afamado, chegou com sua turma, assistiu à cerimônia do casamento e, na hora da festa, muita gente, muito barulho. Ele precisava afinar a viola e, antes de começar, queria urinar.
Foi para o terreiro junto da cerca de taquara, desabotoou a braguilha e, enquanto urinava, afinava a viola, colocando o bojo dela de encontro ao ouvido, por causa do barulho da festa. Afinava uma corda e fazia acordes para conferir a afinação, afinava outra e fazia o mesmo. Como ele era muito virtuoso, entusiasmou-se com aqueles acordes e se esqueceu até da festa. Foi preciso chamarem.
Na arrumação de começarem a tocar, nem seus companheiros viram. O baile começou e Zarias no canto, tocando sua violinha. E eram polcas, valsas, mazurcas, às vezes um rasteado ou uma quadrilha, muito xote e todos dançando. Foi quando Nacleto começou a reparar que as mulheres puxavam seus pares, no embalo da dança, para mais perto de onde eles estavam. E sempre soltavam risinhos, trocando sinais entre si.
Nacleto pôs cada vez mais sentido e viu que tinha alguma coisa errada. Seguindo os olhares, descobriu que a braguilha de Zarias estava aberta e as partes para fora. Começou a olhar para ele desesperadamente antes que, em vez de só as mulheres, os homens também notassem. E aí, seria caso até de morte.
Zarias não entendia o que o companheiro queria dizer com tanto sinal; todos estavam tocando direito, nenhuma nota escorregada, a festa muito animada. Nacleto olhava para os olhos dele e tentava puxar, arrastando com o olhar sua atenção para a braguilha. Até que conseguiu, mas a viola atrapalhava ele enxergar as partes de fora.
Nessa hora, já ficava em frente de Zarias, escondendo ele, para evitar o assanhamento do salão. E Zarias pensava, por que será que Nacleto queria aparecer tanto, ele que era o mais quieto de todos?
Era de uma pausa a combinação, mas Nacleto acabava uma música, puxava os baixos da sanfona e começava um recortado, Zarias não entendia, aquilo não tinha sido combinado.
O desassossego tomou conta também de Clóvis e Zé Dado, que não sabiam o que estava acontecendo, quando repararam na braguilha do companheiro. Aí foi sinal de tudo que é jeito. Zarias levantou a viola, encostando o bojo na orelha, e viu suas partes de fora.
Assustado e vermelho de vergonha, virou de costas e, no terminar da música que tocavam, entrou num rasteado que fazia com uma mão só e, com a outra, guardou as partes e abotoou a braguilha.
Acabaram a função. Zarias saiu na frente, montou seu cavalo e esperou os companheiros no Inajá. Obtendo deles a promessa de nunca relatarem o acontecido, não voltarem lá e nunca mais falarem no assunto com ele.
Desse dia em diante, nunca mais voltou a Urutaí e, fora seus três companheiros e algumas mulheres que viram, mais ninguém soube do acontecido.

- Pai, como é que dona Flora soube? E com tantos detalhes, perguntei.

- Ela foi casada com ele.




°°°



Rua de Baixo



- Cotinha, que sombrinha bonita, foi de Baldino, foi?

- Demorou mas trouxe; trouxe também uma peça de chita p’ra Das Dores do Baltazar, mas não achou minhas intertelas. Ele passou lá, encomenda de Irino. Nem olhei nada não. Tava na hora da minha novena e ele com pressa.

- A senhora viu quem o padre escolheu para festeiro?

- Também não gostei. O seu Zé Bilú até simpatizo, mas a mulher dele é um entojo, gosto não. É um tal de lá em Minas prá cá, lá em Minas prá lá.

- Ela é muito exibida mesmo.

- Passa o dia inteiro varrendo a porta da rua, sem precisão. Até parece que é muito asseada. Dona Duvigis do céu! Quase esqueço de contar, o filho da Davina da pensão embarrigou a sobrinha dela.

- O mais velho?

- Não, o mais moço. Imagina também deixar aquela molecada sozinha, ainda mais a sobrinha, filha de quem é.

- Lembro da mãe dela não!

- Aquela que foi excomungada, morava no curtume.

- Não, Cotinha. Aquela não era mãe dela, era irmã da mãe e da Davina.

- É a mesma coisa, essa gente é tudo igual. Num vê o filho do seu Laudênio, igual ao pai, não vale nada. Todo dia vejo o cavalo dele parado na porta daquela mulher amigada do Custódio.

- Cruz credo, que discaração.

- Imagina que ele põe de um tudo prá ela, até encomenda de peça de pano fez p’ro Baldino. O dia que descobrir vai ser um deus nos acuda.

- Soube da Ana do Clemente?

- Que falta de vergonha, logo com o vaqueiro. Basta ver os dois juntos, o jeito dela dá ordens prá ele. Quem não sabe.

- Nem na missa ela vai mais. Seu Clemente deve de tá revirando na cova.

- A Júlia Parteira me contou que o vaqueiro num dorme junto com os outros, não. Tem dentro da casa um quarto só dele, ao lado do dela.

- Deveras?

- Ela pois a Clotilde e o marido, quando foram de poso, prá dormir no quarto do vaqueiro e ele num colchão do lado da porta do quarto dela.

- Que falta de respeito.

- Esse mundo tá virado, Cotinha.

- Aquele lá num é o irmão do que enforcou a mulher?

- Parece. O Irino diz que viu ela enforcada, ficou de cedo até de noite pendurada na corda. Disse que num podia mexer no corpo até a polícia chegar. O pescoço dela foi esticando por causa do peso do corpo. Que judiação.

- Dona Duvigis, senhora já pois reparo nas desgraças que tá acontecendo aqui? Dona Idalina, coitada, nunca mais soube de Mundica. Agora, a mais nova abandonada pelo marido. Ele parecia tão bom.

- Mas num tolerou a loucura da Lilica.

- Isso é. Mas quem havia de tolerar, ele não devia é ter casado com ela.

- Mas a cobiça era nas terra do sogro.

- Lilica é muito formosa e os homens num querem saber do juízo não, quer é tudo na mão, a formosura e o fogo do corpo.

- Falar em fogo, Cotinha, tem noticias do sacristão?

- Tenho não, o padre num deixa ninguém entrar no quarto dele. Diz prá respeitar a velhice dos outros. Depois do enterro ele ficou variando, só vi ele no dia.

- E os parente dele?

- É sozinho no mundo. Os parentes que tem, ninguém sabe onde vive, só sabe que foram p’ro norte.

- Não é no norte que o filho da Lila mora, aquele esquisito que tem nome de mulher.

- É sim, ele esteve aqui outro dia, é meio esquisito mesmo.

- Eu vi ele conversando com o Arcanjo, andou por aí em todo lugar.

- Já reparou o desmazelo que tá a igreja depois da doença do Otacílio?

- Mas quem tá cuidando agora é dona Geralda; porca que só ela, num limpa nada na igreja, mas é protegida do seu Firmino, único benfeitor que o padre vê, desde que ele deu o sino novo.

- Diz que o seu Firmino dorme é pelado.

- Quem te contou?

- Foi Rita Bananera, ela viu ele levantar igual veio no mundo, e num foi só uma vez, não.

- Será que ela tá se engraçando com ele?

- Viúva há tanto tempo, né? E ela tem jeito de fogosa.

- Será? Por isso que ela passa lá todo dia e com o mesmo tanto de banana no tabuleiro que entra, sai.

- É mesmo. A senhora espia eles.

- Destramelo a janela e olho pela fresta. Ela só vai lá cedinho, hora que ele tá acordando.

- Num falo que é gente que num presta?!

- Cotinha, vamos rodear, num gosto de passar na porta da venda desse Manco, só tem falação e fuxico, esse homem não presta.





°°°

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Novembro de 1999Foi numa tarde
de passarinhos,
de água clara.

O sol projetando
os espaços,
a ponte sugerindo
as ligações
do trabalho
com a saudade.

Era o terminar do século.

O computador portátil,
no banco traseiro do carro,
pronto para palavras antigas
e o Braço indo... indo...

De repente vi.

- Tarde, seu moço...

Perplexo respondi:

- Boa tarde.

Era Baldino,
Ojero, Borborema
e toda a mulada
entrando nos matos
no rumo de Ipameri.



FIM
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